Regressei.
Faz hoje 7 anos que iniciei este blogue.
Por diversas razões, não consegui ter disponibilidade (mais mental que real) para escrever no blogue.
Como hoje termina o meu mandato como diretora do Departamento de Artes e Humanidades e a data coincide com a fundação do blogue, achei que seria também uma boa altura para o retorno.
Quem me acompanhou nestes dois anos (no Facebook, por exemplo), sabe que uma das atividades exercidas paralela e graciosamente ao meu trabalho como professora na Universidade do Algarve tem sido a escrita mensal de um texto para o jornal Postal do Algarve, mais precisamente para o suplemento Cultura.Sul.
Os artigos não são académicos nem de crítica literária, mas sim de promoção de leitura: falo de livros de que gosto, quando me apetece. Não têm de ser novidade nem apenas de autores algarvios (se bem que, sempre que posso, faça por divulgar o bom que se publica nesta região que adoptei e me adoptou). Por isso a rubrica se chama «Da minha biblioteca».
E porque de retorno falamos, deixo aqui o texto que escrevi, há uns meses, sobre o excelente livro de Dulce Maria Cardoso:
(imagem
daqui)
Dulce Maria Cardoso (2011). O Retorno. Lisboa: Tinta da China.
Dulce Maria Cardoso andou
muito tempo esquecida das nossas livrarias, jornais e revistas literárias, mas
não dos seus leitores, que cativou desde o primeiro romance. Em contrapartida,
o seu quarto e último livro, O Retorno,
mereceu atenção de todos e foi, ainda em 2011 (apesar de ter sido lançado já em
outubro) considerado o melhor romance, e por isso recebeu o Prémio Especial da
Crítica dos Prémios de Edição LER/Booktailors.
Uma das grandes
qualidades que encontro neste livro é a de poder ser compreendido mesmo por uma
pessoa que não passou pela situação de retornada nem tem memória desse tempo,
como é o meu caso. Apesar de acreditar que quem tenha vivido a situação o
entenderá com outra emoção e entendimento, acredito também que a Literatura
(usei maiúsculas propositadamente) se faz desta capacidade de ser universal e
de quebrar barreiras. Por exemplo, a vontade de integração e de aceitação
dentro de um grupo onde somos recém-chegados já foi sentida por muitos dos
leitores (um emprego novo, uma terra nova, uma nova escola, etc.) e é essa
reminiscência que nos faz compreender tão bem a jovem Milucha: «A minha irmã
tem vergonha de ser retornada, finge que é de cá e esconde o cartão que tem o
carimbo vermelho, aluna retornada, o cartão que dá direito a um lanche na
cantina. A minha irmã cheia de fome mas sem coragem de ir à cantina para que os
de cá não vejam o cartão, aluna retornada. A minha irmã a achar que pode não
ser retornada apesar das roupas grandes, da pele ainda queimada pelo sol de lá,
de se rir sem medo que os lábios sangrem, um sorriso bonito, a minha irmã a
fingir que não é retornada, a dizer pequeno-almoço, frigorífico, autocarro,
furos, em vez de matabicho, geleira, machimbombo, borlas» (p.150)
Um dos aspetos de que
mais gostei foi o do ponto de vista escolhido: o de Rui, um jovem de 15 anos,
que acompanhamos durante dois anos, através de quem vemos o mundo, mas que não
nos deixa ver tudo quanto se passa à volta ou dentro de si. Uma sabedoria na
construção da narrativa leva o leitor a surpreender-se, pois, apesar de não perder
o fio à meada, a narração não segue uma linha cronológica, levando-nos a deduzir
o que se passa ou passou, ou que o narrador/personagem sabe ou não, mas que não
nos quer contar. A idade, longe de infantilizar, devolve pureza à história. A
pontuação escolhida, onde pontifica a ausência de marcação de discurso direto,
provocando uma interseção constante entre o que é visto, o que é dito e o que é
pensado, contribui para, por um lado, nos envolvermos na confusão de
sentimentos por que passa Rui, e, por outro, para irmos acompanhando a
interceção entre acontecimentos, através das lembranças (ou construções da
imaginação) do narrador. Há um exemplo muito claro, que se estende ao longo de
5 páginas (59-63). A família, sem o pai, que tinha sido levado preso perante o
filho, aguarda em Luanda transporte para a metrópole. Cada um dos 18 parágrafos
que constituem aquele capítulo onde se conta a situação vivida no aeroporto
termina com uma frase da situação presenciada por Rui, contada no capítulo
anterior, como se um parágrafo tivesse sido desfeito em frases a estalarem na
cabeça do adolescente, com a atenção ao pormenor que sempre acontece em
momentos de grande tensão, memória em forma de imagens soltas e de sons, sem
seguir necessariamente a ordem dos acontecimentos: «O jipe desaparece depois da
casa da Editinha». «As mãos do pai amarradas atrás das costas». «Vamo matáti
cum tuá arma e tuá bala». «A poeira demora a assentar». «A balalaica branca do
pai ensopada de sangue». «O isqueiro Ronson Varaflame caído ao pé do canteiro».
«A mãe de braços caídos no fim da rua». «O sangue do pai no asfalto». «Os vasos
da escada tombados». «O pai metido à força no jipe». «As mãos do preto no braço
do pai». «A minha irmã sem conseguir descer as escadas». «A Pirata a ganir com
o pontapé do preto». «Os olhos aflitos do pai». «Os pretos a rirem quando o
jipe arranca». «A arma do pai nas mãos do preto». «A arma do pai apontada à
cabeça». «A mãe a correr por dentro da poeira que não assenta».
As personagens
secundárias representam muitos tipos: os que eram contra o regime, os que eram
a favor, os que se alegraram com a colonização, os que culparam os
descolonizadores, mas não procura encontrar culpados, mas mostrar quadros e
vidas desenraizadas.
Ainda em Angola, a mãe
costumava dizer: «Esta terra não nos pertence enquanto não lhe conhecermos o
coração, enquanto não lhe conhecermos o coração esta terra não guardará as
nossas marcas nem reconhecerá os nossos passos» (p.151). E o que Rui vê, depois
de quase dois anos a viver num quarto de hotel, é que «a metrópole é velha e já
não tem um pedaço de terra selvagem onde a mãe possa inventar um coração»
(p.195).
No entanto, este livro
fala de esperança. Uma esperança assente da força do pai, um pai que,
fisicamente, também é forte, que acredita conseguir reconstruir a sua vida. Fala
de libertação. A libertação dos medos que tolhem a vida. Fala de crescimento.
Não apenas de Rui, mas de todos, inclusive do pai. Fala de ternura. Entre o
casal, entre pais e filhos, entre irmãos, entre filhos e pais. Mas uma ternura
não lamecha. Porque a mãe tinha «crises» e «demónios», os filhos poupavam-na e
não se queixavam das privações e provocações que lhes aconteciam na escola:
desprezo, frio, fome. As professoras escreviam (pp.149-50) «recados, a aluna
tem muito frio, a aluna está sempre a tremer nas aulas, a aluna tem de vir mais
agasalhada. Nunca mostrámos à mãe os recados […]. Era o que faltava mostrar os
recados das professoras à mãe».
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