27 dezembro 2013

Hoje, estando de férias (sim, estou legalmente de férias), andei a dar uma voltinha pelas «postagens» e vi que tinha esta em rascunho desde Agosto de 2010...
Não sei o que se terá passado, mas hoje, que até estive a ler um livrinho de Proust sobre a leitura (uma edição da FNAC), Séneca vem mesmo a calhar:

A leitura alimenta a inteligência e retempera-a das fadigas do estudo, sem, contudo, pôr de lado o estudo. Não devemos limitar-nos nem só à escrita, nem só à leitura: uma diminui-nos as forças, esgota-nos (estou-me referindo ao trabalho da escrita), a outra amolece-nos e embota-nos a energia. Devemos alternar ambas as actividades, equilibrá-las, para que a pena venha a dar forma às ideias coligidas das leituras.

Séneca, Cartas a Lucílio, 84, 2.

21 setembro 2013

Viver para comer ou comer para viver



(Museu de Nápoles: réplica do séc. I d.C. de um original grego do séc. IV a.C.)

Ando a namorar com o Diógenes Laércio e decidi ver o que diz ele de Xantipa, a mulher de Sócrates:

Uma vez em que Sócrates convidou umas pessoas ricas para jantar e Xantipa ficou envergonhada, ele disse-lhe: «Nada receies, pois se forem tolerantes, serão indulgentes, se não prestarem, não nos preocupemos com elas». E dizia que os outros homens viviam para comer, enquanto ele comia para viver.
(II, 5, 18.)
[Foto e tradução minhas]

13 setembro 2013

Aulinhas de Grego


Na segunda-feira começam as aulas de Grego.

Estou muito contente e entusiasmada, pois é apenas a segunda vez que tenho a possibilidade de ensinar a minha língua do coração na Universidade do Algarve.
E tudo me está a dar uma alegria quase infantil: a escolha dos textos, a metodologia a adotar, as estratégias de motivação...
Além de que me dá um prazer quase pigmaliónico dar aulas de iniciação: é lindo ver o saber e o prazer da descoberta a crescer nos alunos.

Vai ser bom, tenho a certeza!




11 setembro 2013

O regresso

Regressei.
Faz hoje 7 anos que iniciei este blogue.
Por diversas razões, não consegui ter disponibilidade (mais mental que real) para escrever no blogue.
Como hoje termina o meu mandato como diretora do Departamento de Artes e Humanidades e a data coincide com a fundação do blogue, achei que seria também uma boa altura para o retorno.

Quem me acompanhou nestes dois anos (no Facebook, por exemplo), sabe que uma das atividades exercidas paralela e graciosamente ao meu trabalho como professora na Universidade do Algarve tem sido a escrita mensal de um texto para o jornal  Postal do Algarve, mais precisamente para o suplemento Cultura.Sul.
Os artigos não são académicos nem de crítica literária, mas sim de promoção de leitura: falo de livros de que gosto, quando me apetece. Não têm de ser novidade nem apenas de autores algarvios (se bem que, sempre que posso, faça por divulgar o bom que se publica nesta região que adoptei e me adoptou). Por isso a rubrica se chama «Da minha biblioteca».

E porque de retorno falamos, deixo aqui o texto que escrevi, há uns meses, sobre o excelente livro de Dulce Maria Cardoso:


O Retorno
 (imagem daqui)


Dulce Maria Cardoso (2011). O Retorno. Lisboa: Tinta da China.

Dulce Maria Cardoso andou muito tempo esquecida das nossas livrarias, jornais e revistas literárias, mas não dos seus leitores, que cativou desde o primeiro romance. Em contrapartida, o seu quarto e último livro, O Retorno, mereceu atenção de todos e foi, ainda em 2011 (apesar de ter sido lançado já em outubro) considerado o melhor romance, e por isso recebeu o Prémio Especial da Crítica dos Prémios de Edição LER/Booktailors.
Uma das grandes qualidades que encontro neste livro é a de poder ser compreendido mesmo por uma pessoa que não passou pela situação de retornada nem tem memória desse tempo, como é o meu caso. Apesar de acreditar que quem tenha vivido a situação o entenderá com outra emoção e entendimento, acredito também que a Literatura (usei maiúsculas propositadamente) se faz desta capacidade de ser universal e de quebrar barreiras. Por exemplo, a vontade de integração e de aceitação dentro de um grupo onde somos recém-chegados já foi sentida por muitos dos leitores (um emprego novo, uma terra nova, uma nova escola, etc.) e é essa reminiscência que nos faz compreender tão bem a jovem Milucha: «A minha irmã tem vergonha de ser retornada, finge que é de cá e esconde o cartão que tem o carimbo vermelho, aluna retornada, o cartão que dá direito a um lanche na cantina. A minha irmã cheia de fome mas sem coragem de ir à cantina para que os de cá não vejam o cartão, aluna retornada. A minha irmã a achar que pode não ser retornada apesar das roupas grandes, da pele ainda queimada pelo sol de lá, de se rir sem medo que os lábios sangrem, um sorriso bonito, a minha irmã a fingir que não é retornada, a dizer pequeno-almoço, frigorífico, autocarro, furos, em vez de matabicho, geleira, machimbombo, borlas» (p.150)

Um dos aspetos de que mais gostei foi o do ponto de vista escolhido: o de Rui, um jovem de 15 anos, que acompanhamos durante dois anos, através de quem vemos o mundo, mas que não nos deixa ver tudo quanto se passa à volta ou dentro de si. Uma sabedoria na construção da narrativa leva o leitor a surpreender-se, pois, apesar de não perder o fio à meada, a narração não segue uma linha cronológica, levando-nos a deduzir o que se passa ou passou, ou que o narrador/personagem sabe ou não, mas que não nos quer contar. A idade, longe de infantilizar, devolve pureza à história. A pontuação escolhida, onde pontifica a ausência de marcação de discurso direto, provocando uma interseção constante entre o que é visto, o que é dito e o que é pensado, contribui para, por um lado, nos envolvermos na confusão de sentimentos por que passa Rui, e, por outro, para irmos acompanhando a interceção entre acontecimentos, através das lembranças (ou construções da imaginação) do narrador. Há um exemplo muito claro, que se estende ao longo de 5 páginas (59-63). A família, sem o pai, que tinha sido levado preso perante o filho, aguarda em Luanda transporte para a metrópole. Cada um dos 18 parágrafos que constituem aquele capítulo onde se conta a situação vivida no aeroporto termina com uma frase da situação presenciada por Rui, contada no capítulo anterior, como se um parágrafo tivesse sido desfeito em frases a estalarem na cabeça do adolescente, com a atenção ao pormenor que sempre acontece em momentos de grande tensão, memória em forma de imagens soltas e de sons, sem seguir necessariamente a ordem dos acontecimentos: «O jipe desaparece depois da casa da Editinha». «As mãos do pai amarradas atrás das costas». «Vamo matáti cum tuá arma e tuá bala». «A poeira demora a assentar». «A balalaica branca do pai ensopada de sangue». «O isqueiro Ronson Varaflame caído ao pé do canteiro». «A mãe de braços caídos no fim da rua». «O sangue do pai no asfalto». «Os vasos da escada tombados». «O pai metido à força no jipe». «As mãos do preto no braço do pai». «A minha irmã sem conseguir descer as escadas». «A Pirata a ganir com o pontapé do preto». «Os olhos aflitos do pai». «Os pretos a rirem quando o jipe arranca». «A arma do pai nas mãos do preto». «A arma do pai apontada à cabeça». «A mãe a correr por dentro da poeira que não assenta».
As personagens secundárias representam muitos tipos: os que eram contra o regime, os que eram a favor, os que se alegraram com a colonização, os que culparam os descolonizadores, mas não procura encontrar culpados, mas mostrar quadros e vidas desenraizadas.
Ainda em Angola, a mãe costumava dizer: «Esta terra não nos pertence enquanto não lhe conhecermos o coração, enquanto não lhe conhecermos o coração esta terra não guardará as nossas marcas nem reconhecerá os nossos passos» (p.151). E o que Rui vê, depois de quase dois anos a viver num quarto de hotel, é que «a metrópole é velha e já não tem um pedaço de terra selvagem onde a mãe possa inventar um coração» (p.195).
No entanto, este livro fala de esperança. Uma esperança assente da força do pai, um pai que, fisicamente, também é forte, que acredita conseguir reconstruir a sua vida. Fala de libertação. A libertação dos medos que tolhem a vida. Fala de crescimento. Não apenas de Rui, mas de todos, inclusive do pai. Fala de ternura. Entre o casal, entre pais e filhos, entre irmãos, entre filhos e pais. Mas uma ternura não lamecha. Porque a mãe tinha «crises» e «demónios», os filhos poupavam-na e não se queixavam das privações e provocações que lhes aconteciam na escola: desprezo, frio, fome. As professoras escreviam (pp.149-50) «recados, a aluna tem muito frio, a aluna está sempre a tremer nas aulas, a aluna tem de vir mais agasalhada. Nunca mostrámos à mãe os recados […]. Era o que faltava mostrar os recados das professoras à mãe».
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