26 fevereiro 2007

Da lógica da batata...

Platão, Eutidemo, 300a:
«Os homens vêem primeiro as coisas que podem ver ou as que não podem ?»
«As que podem»


Mesmo que o jovem Ctesipo tivesse dito as que não podem, seria refutado...
O sofisma que se segue baseia-se numa ambiguidade sintáctica (anfibologia) permitida pela frase acima:

  • sentido passivo (e imediatamente apreendido por qualquer um de nós) - Os homens vêem primeiro as coisas que [eles, homens,] podem ver - isto é, as coisas que podem ser vistas (pelos homens).
  • sentido activo - Os homens vêem primeiro as coisas que podem ver - isto é, as coisas que têm a capacidade de ver - isto é, as coisas com olhos.
Então, Eutidemo pergunta que coisas podem os mantos estar também a ver... já que Ctesipo pode ver os mantos...

Nota interna

Tenho andado sem computador, sem ligação à internet, sem casa muito fixa, em mudanças infindáveis, enfim... mas vou voltar!
Obrigada e um abraço a todos os amigos!

19 fevereiro 2007

Romance Antigo

A primeira vez que ouvi falar de Romance Antigo, da novela grega, das histórias de amor e de aventuras, com piratas e finais felizes, foi nas aulas de Literatura Grega, com Maria Helena Ureña Prieto. Grande senhora, grandes aulas. E fiquei fã! Foi a porta do mundo helenístico que se abriu, com os seus homens e mulheres muito mais perto de nós... ou melhor, mostrados muito mais perto...
Lisboa vai receber para o ano o ICAN (International Conference on the Ancient Novel) -Crossroads in the Ancient Novel: Spaces, Frontiers, Intersections, de 21 a 26 de Julho, na Gulbenkian. Na organização temos um grupo de portugueses presidido por Marília Futre.
Já estão abertas as inscrições para apresentação de comunicações. Assim é que é: com ano e meio de antecedência.
Promete!

14 fevereiro 2007

Gerir a ausência e a saudade

Enquanto dá passos incertos o novo amor, deve buscar no uso as suas forças;
se bem o souberes alimentar, com o tempo ficará firme.
(...)
Faz com que se acostume a ti; nada tem mais força que a habituação;
até a alcançares, não fujas a nenhum dissabor;
(...)
Quando tiveres mais funda certeza de que pode ter saudades tuas (...)
dá-lhe descanso; o campo em pousio devolve com lucro o que lhe foi confiado,
e a terra árida absorve melhor a chuva que cai do céu.
(...)
Mas a demora sem risco tem de ser curta; amolecem com o tempo os cuidados,
o amor ausente desvanece-se, e um outro novo se vai insinuando.

Ovídio, Arte de Amar, II, 339-358. Sempre a mesma tradução.

13 fevereiro 2007

Minister

Ouvia agora* na Antena 1 alguém dizer que não percebia a abstenção em Portugal, dado que é o terceiro referendo que se faz em que não se consegue menos de 50% de abstenções, nem percebia a falta de empenhamento político.
Eu acho que percebo a falta de empenhamento político.
Vejo-o no nos meus alunos, que são cidadãos votantes, vejo-o nos miúdos das escolas secundárias, à beira de o ser.
Quando vou fazer as palestras «A Magia das Palavras», «Lógica da Batata» ou «Tragédia Grega», tenho oportunidade de conversar com eles. E uma palavra que meto no discurso, quer venha a propósito (vem sempre n' «A Magia das Palavras»), quer não venha, é «ministro».
-O que é um ministro?
- Aldrabão! Mentiroso! - respondem invariavelmente.
Nessa altura preparo o discurso e digo que não. Que a prática que alguns ministros têm não pode ser generalizada para todos, que ser ministro, deputado, presidente da república, de câmara, de junta, etc., são cargos que todos nós poderemos um dia vir a ocupar. E que, para que eles, jovens, possam dizer que este ou aquele é mentiroso e aldrabão tem de estar informados, tem de conhecer a política do país, dos partidos, enfim, tem de aproveitar estes momentos únicos de aprendizagem que a escola lhes dá, de saberes que lhes vão ser úteis para toda a vida, desde a matemática ao português (os «monstros»), passando pela filosofia e a história, entre tantos outros, saberes que o vão tornar um melhor cidadão (e a ser menos «enganado»!)

E claro, explico que «ministro» vem do latim minister que significa «escravo, servo», palavra que, por sua vez, vem de minus, que significa «menos, muito pouco». O ministerium era o serviço atribuído a esses escravos.
Pois.

* Este postal foi escrito ontem, às 8.57, e não publicado por distracção!

09 fevereiro 2007

Figo, fruta secreta...

De «Figos», de Herberto Helder, roubei estas partes (in Poesia Toda, publicado pela Assírio e Alvim):


A maneira correcta de comer um figo à mesa
É parti-lo em quatro, pegando pelo pedúnculo,
E abri-lo para dele fazer uma flor de mel, brilhante, rósea, húmida, desabrochada em quatro espessas pétalas.

Depois põe-se de lado a casca
Que é como um cálice quadrissépalo,
E colhe-se a flor com os lábios.

Mas a maneira vulgar
É pôr a boca na fenda, e de um sorvo só aspirar toda a carne.

Cada fruta tem o seu segredo.

O figo é uma fruta muito secreta.
Quando se vê como desponta direito, sente-se logo que é simbólico:
Parece masculino.
Mas quando se conhece melhor, pensa-se como os romanos que é uma fruta feminina.
(...)
Foi sempre segredo.
E assim deveria ser, a fêmea deveria manter-se para sempre secreta.

(...)
Os figos maduros não se ocultam.

Figos branco-mel do Norte, negros figos de entranhas escarlates do Sul.
Os figos maduros não se ocultam, não se ocultam sob nenhum clima.
Que fazer então quando todas as mulheres do mundo se abrirem na sua afirmação?

Quando os figos abertos se não ocultarem?

outra barroca

A um peito cruel

O bem passado que é? é mal presente,
O mal presente que é? é dor esquiva,
A dor esquiva que é? é morte viva,
A morte viva que é? inferno ardente,

Com mal quem poderá viver contente,
Com dor quem haverá que alegre viva,
Com morte quem não tem pena excessiva,
Com inferno quem vive alegremente?

Por bem passado mal vou padecendo,
Por alegri dor, por vida morte,
Com glória o mesmo inferno estou sofrendo:

Mas ah, peito cruel, que ainda é mais forte
A dura condição, que em ti estou vendo,
Que bem, e mal, e dor, inferno, e morte.

Fénix Renascida, v.II, pg.104, 1717
in Antologia da poesia do período barroco, organizada pela Natália Correia para a Moraes Editores, editada em 1982.

08 fevereiro 2007

poesia barroca

Ao desencaixotar tenho encontrado livros de que já tinha sentido a falta, outros que nem por isso, outros de que já não me lembrava, enfim...
Encontrei um que me divertia e de que gostava e do qual já não me lembrava (às vezes não nos apercebemos de como gostamos das coisas...): Antologia da poesia do período barroco, organizada pela Natália Correia para a Moraes Editores, editada em 1982.

A um casamento que fez em Lisboa um fulano de Mello com uma fulana de Mello, ambos velhos

Bizarra em cadeira ela,
Bizarro em cavalo ele,
Ele com muito ar nela,
Ela com muito ar nele.

Fidalgos ele e ela,
Não há para que dizê-lo,
Ele Mello, é ramelo,
Ela Mella, é ramela.

Poesia Inédita de D. Tomás de Noronha, Mendes dos Remédios, pág. 36

06 fevereiro 2007

Amália / Jocasta

AMÁLIA, ao aperceber-se que o amante, ANTÓNIO, é seu filho, exclama:
Ai, cosam-me a boca! Ceguem-me os olhos! Quebrem-me os braços e pernas!... Cubram-me de cinza! Escondam-me de toda a gente! Enterrem-me viva!... (A bater com ambos os punhos na parede.) Matem-me!... Ai, matem-me! matem-me!...
Mas, mais tarde, reaje.
AMÁLIA (torturada): Não sei... não sei?!... (Outra vez dura, de pedra negra) Não tenho culpa. Hei-de viver!...
(...)
HOMENS E MULHERES (no auge do ódio, avançando para Amália): Morra! Morra! Morra!...
AMÁLIA (fúria negra, medonha; subindo, em defesa, para cima da mesa): Quero viver!... Hei-de viver!... Hei-de viver!...
(...)
(estas quatro personagens param por momentos e, logo a seguir, voltam-se odientas para Amália.)

3ª MULHER: Que Deus me beba os olhos, antes que eu te veja viva! Mata-te!...
1º HOMEM: Que Deus me cosa ouvidos e boca, que Deus me quebre mãos e braços... antes que eu te oiça, que eu te fale, que eu te sinta viva! Mata-te!...
1º e 2º HOMENS, 1º e 3ª MULHERES: Mata-te! Mata-te! Mata-te!...
(...)
AMÁLIA: Quero viver!... quero... quero!...(...) Hei-de viver! Hei-de ser feliz!... Quero viver!...

Bernardo Santareno,«António Marinheiro (o Édipo de Alfama)», in Obras Completas - 2º Volume, Editorial Caminho, 1985.

02 fevereiro 2007

oboístas

Ao mexer em papéis (mudanças, é no que dão...), encontrei um com a seguinte frase, transcrita, à mão (coisa rara), por mim há muitos anos, tirada não sei de onde:

Harry Ellis Dickson: «Todos os primeiros oboístas são gangsters. São duros e irascíveis galos de palheta dupla, temidos pelos colegas e pelos maestros.»

01 fevereiro 2007

A cidade (K. Kavafis)

Em época de mudanças, procuro não me esquecer das palavras de Konstandinos Kavafis (na tradução de Nikos Pratsinis e Joaquim Manuel de Magalhães, para a Relógio d'Água, em 2005).

A cidade

Disseste: «Vou partir para outra terra, vou partir para outro mar.
Uma outra cidade melhor do que esta encontrar-se-á.
Cada esforço meu um malogro escrito está;
e é - como morto - enterrado o meu coração.
A minha mente até quando irá ficar nesta estagnação.
Para onde quer que eu olhe, para onde quer que fite por aí
ruínas negras da minha vida vejo aqui,
onde tantos anos passei e dizimei e dei em estragar.»

Lugares novos não vais encontrar, não encontrarás outros mares.
A cidade seguir-te-á. De volta pelos caminhos errarás
os mesmos. E nos bairros os mesmos envelhecerás;
e dentro dessas mesmas casas cobrir-te-ás de cãs.
Sempre a esta cidade chegarás. Para os noutra parte - esperanças vãs -
não há barco para ti, não há partida.
Assim como dizimaste aqui a tua vida
neste pequeno recanto, em toda a terra a vi estragares.