Durante 8 anos (de julho de 2010 a julho de 2018) escrevi no jornal Postal do Algarve, no suplemento Cultura.Sul, sobre livros «Da minha biblioteca» (que era o nome da rubrica).
Como forma de não deixar morrer (por agora) este que foi o meu primeiro blogue e, ainda, preservar alguns desses textos, vou publicá-los por aqui, de vez em quando.
:)
Começo por...
Como forma de não deixar morrer (por agora) este que foi o meu primeiro blogue e, ainda, preservar alguns desses textos, vou publicá-los por aqui, de vez em quando.
:)
Começo por...
Lívia & Júlia
Lívia e Julia (no texto, em latim, sem acento). Dois nomes romanos de duas
mulheres fortes. Lívia, uma mulher real, farense, do século XXI, conta a
história de Júlia, também uma mulher real, romana, do séc. I.
A história de Julia é
ficcionada por Lívia. Partindo de uma pequena referência arqueológica a uma tal
Iulia Felix, dona de uma grande
propriedade em Pompeios*, constrói a personagem, do nascimento à morte.
Que as cerca de 500
páginas não assustem o leitor, pois nem vai dar por elas. Posso confessar que, quando
acabei, fiquei com a sensação de que «soube-me a tanto/ portanto/ hoje soube-me
a pouco» (como tão bem canta o Sérgio Godinho).
A cidade de Pompeios é
tristemente conhecida por ter ficado soterrada por uma erupção do vulcão Vesúvio,
no ano 79 da nossa era. Entre as ruínas (em que só uma parte é hoje visitável),
podemos encontrar belíssimos frescos (pinturas murais comuns em toda a
antiguidade) que representam cenas da vida quotidiana. Inspirada,
provavelmente, por estes pequenos retratos de um mundo perdido, o livro de
Lívia Borges consegue o propósito do subtítulo: «Frescos de Pompeia», pois o
romance pinta com cores variegadas a vida de Julia Vinicia Galla, conhecida
como Julia Felix, por decisão da
própria personagem. Na época imperial (a do romance), já era frequente as raparigas
terem um nome próprio (antes, tinham apenas o nome da família do seu pai, a gens, na forma feminina). Menos vulgar
era que esse nome fosse o da mãe, mas neste romance também se retrata um amor
eterno de um homem pela sua esposa, algo incomum (mas não impossível, como o
revelam alguns testemunhos históricos) na Roma antiga, em que os casamentos
eram arranjados pelas famílias. E assim temos Julia Vinicia Galla, filha de Julia
e de Spurius Vinicius Galla, que escolhe o cognome (como era hábito os homens
fazerem) de Felix (feliz), como
distintivo, marcando uma felicidade por si construída.
A educação antiga
Esta Julia teve uma
educação muito mais próxima da que seria normal para um rapaz do que para uma
rapariga. Não se esquecendo de lhe dar também formação para se portar como uma
senhora, que se deveria casar, procriar e ser esposa, o pai de Julia, por não
ter tido um filho varão, concedeu à filha a graça da educação dos rapazes: um
professor grego ensinou-lhe aquela língua, bem como todas as matérias que
formavam o cidadão activo na sociedade, para, citando Spurius (p.66), saber
«como se comportar, como agir, como se defender no mundo onde nasceu». A
educação é a arma para isso tudo (não só no tempo dos romanos). Spurius sabe o
que quer para a filha, logo aos 5 anos (p.56): «Julia irá aprender a ler e a
escrever, aprender literatura, poesia, mitologia, história, geografia, matemática,
grego e latim e também aprender a falar em público».
Armada deste modo, quando
Julia fica sozinha, viúva e órfã, são estes saberes que a salvam de uma vida em
que dependeria obrigatoriamente de um marido ou de um tutor (como mais tarde
lhe acontece, não sem que deixe de conseguir dar a volta por cima… mas não vou
contar o final).
Frescos
As cores dos frescos vão
variando: cores garridas com a glória de Julia e o esplendor da vida que erige
na sua Campânia amada; cores desmaiadas pelas cinzas do Vesúvio; cores
agressivas de uma Roma imperial, que sufoca os seus habitantes com intrigas e
terror.
As intrigas são,
precisamente, outro elemento muito bem explorado por Lívia Borges: enrola-nos
em acordos e tratos velados ou a descoberto, desvenda-nos conluios
interesseiros, mas mostra-nos também amizades verdadeiras, que sobrevivem a
todas as intempéries.
Outro elemento que dá
prazer na leitura é a vivacidade com que a autora nos dá a conhecer as
personagens e a sua vida de todos os dias. Os salpicos de palavras em latim em
nada dificultam a narrativa e contribuem para a construção de que não estamos a
ler ficção, mas sim história verdadeira. As descrições de refeições simples, de
banquetes, de lutas de gladiadores, de castigos a escravos, de violência
doméstica, de amor sensual, são, ao mesmo tempo, explícitas e subtis, nunca
roçando a vulgaridade ou a vontade de impressionar o leitor com a sua
sabedoria, como por vezes acontece neste tipo de obras.
O facto de a narradora
nos fazer crer, em certos momentos (determinados pela mudança de fonte nos
caracteres usados), que estamos a ler um diário da personagem principal,
aproxima-nos ainda mais desta mulher que, tirando as devidas distâncias a que a
História obriga, não está muito distante de nós.
O convívio com Julia
abriu o apetite para o que aí vem, sim, porque, felizmente, a autora revelou que
estão mais «frescos» a caminho.
Duas últimas observações,
desta vez para a Editorial Presença: a primeira serve para dar os parabéns por
apostarem nesta nova escritora; a segunda, para pedir mais atenção à revisão
(não é indicado o nome de nenhum revisor na ficha técnica), pois um livro desta
qualidade merece toda a atenção e cuidado.
Uma curiosidade onomástica: quanto uma Lívia se tornou Júlia
Livia Drusilla (filha de Marcus
Livio Drusus) foi mulher do primeiro imperador de Roma, Gaius Julius Caesar Augustus (conhecido também como
Octavius Caesar Augustus) e mãe do imperador Tibério. Quando entrou para
aquela família, mudou de nome e passou a ser conhecida como Julia Augusta.
*
Pompeios – a minha formação de classicista obriga-me a esta nota. A cidade vesuviana,
em Latim, é Pompeii, um nome
masculino plural. O nome «Pompeia» foi um erro de tradução do popularíssimo
romance de Edward Bulwer-Lytton, de
1834, The Last Days of Pompeii,
por Os últimos dias de Pompeia. O
nome da cidade, em português, é Pompeios, apesar de o uso ter generalizado Pompeia. Felizmente, já se começa a ouvir (e a ler) a forma correta.