Mostrar mensagens com a etiqueta Eurípides; Alceste; morte. Mostrar todas as mensagens
Mostrar mensagens com a etiqueta Eurípides; Alceste; morte. Mostrar todas as mensagens

14 julho 2008

«É preciso ter lata!» ou «Os pais não têm de morrer pelos filhos»

Foi isto que achei de Admeto, o rei de que vos falei aqui. Aliás, esta tragédia de Eurípides tem momentos de muito humor.
E lata porquê? Porque, na tentativa de convencer alguém a morrer em sua vez, usa argumentos que... só mesmo com muita lata! Acha que os pais são velhos e que deviam ir primeiro que ele, além de que, trocarem com o filho, seria prova de amor!
Eurípides é conhecido por ter aprendido bem com os sofistas, mas tal como monta os argumentos de Admeto, desmonta-os na personagem de seu pai.
Vejamos. Admeto aceita que a mulher morra por ele e depois chora a sua morte (é preciso ter lata!). Quando o pai vem prestar as honras fúnebres à nora, Admeto insurge-se:

ADMETO:
Não foste convidado por mim para este funeral nem considero a tua presença como a de um amigo. (...) Devias compadecer-te de mim quando eu estava perdido. Mas mantiveste-te longe e permitiste que outra pessoa, que era jovem, morresse, tu, um homem já velho. E lamentas agora este cadáver? Não eras tu, na verdade, o pai deste meu corpo? E aquela que se diz e é chamada minha mãe não me deu ela à luz? (...) não me considero teu filho. Ou, então, a todos excedes em cobardia, tu, que, sendo de idade avançada, chegado já ao termo da vida, não desejaste nem ousaste morrer pelo teu filho, deixando esse cuidado a uma mulher estrangeira, a única que eu poderei com justiça considerar como minha mãe e meu pai.
E, no entanto, seria uma bela prova que tu disputarias, morrendo pelo teu próprio filho, quando era já tão curto o tempo que te restava para viver. (...)
Foi esta a recompensa que que de vós recebi, de ti e daquela que me deu à luz. (...) Não serei eu que te sepultarei com a minha mãe. Para ti estou morto (...).

FERES
Ó filho, quem julgas tu, na tua insolência, que estás a atacar com as tuas injúrias? Um Lídio ou um Frígio comprados com o teu dinheiro? Não sabes que sou tessálio, filho de pai tessálio e livre por nascimento? (...) Gerei-te e criei-te para seres senhor deste palácio, mas não tenho obrigação de morrer por ti. Não recebi dos antepassados, nem é grega essa lei de que os pais devem morrer pelos filhos. Feliz ou infeliz, é para ti que nasceste. O que devias receber de mim já o possuis. És chefe de muitos homens e deixar-te-ei terras de muitas jeiras que recebi de meu pai. Em quê, pois, te causei dano? De que te privo eu?
Não morras por mim, que eu não morrerei por ti. Regozijas-te de ver a luz? E pensas que o teu pai não tem o mesmo direito? Imagino como será longo o tempo debaixo da terra, e a vida é breve, mas agradável.

Entretanto tu, sem pudor, lutaste para não morrer e estás vivo: escapaste à sorte imposta pelo destino, matando-a a ela. E falas da minha cobardia, ó celerado, quando afinal tu te deixaste vencer por uma mulher que morreu por ti, por um jovem lindo como tu? Descobriste uma boa maneira de nunca morrer, se persuadires sempre a mulher que tiveres na ocasião a morrer por ti.
E agora vens insultar os teus por não quererem fazer isso, quando tu próprio não passas de um cobarde?
Cala-te e pensa que, se tens amor à vida, os outros também têm; e se continuas a dirigir-me palavras desagradáveis, vais ouvir muitas do mesmo género, e merecidas.

E não é que Admeto não admite (desculpem o trocadilho) que está errado e continua a argumentar com o pai? Leiam, leiam e irritem-se, como eu. Há gente cá com uma lata!

02 julho 2008

Cá para mim, a Morte é comunista...

Pilhas e mais pilhas. Encontro Eurípides e releio Alceste (tradução de Manuel de Oliveira Pulquério e Maria Alice Malça, Ed. Verbo, 1973). Tem partes mais trágicas e outras mais divertidas, mas sempre com a finura intelectual de Eurípides.
Vou deixando pedaços por aqui.

Chegou a hora de Admeto, rei de Feras, morrer, coisa que não lhe agrada. Cobra, então, do deus Apolo, uma velha dívida e este embriaga as deusas do destino para que estas aceitam que morra outra pessoa em sua vez (se alguém aceitar tal troca). Todos se negam: pai, mãe, amigos. Só a mulher, Alceste, o faz. Apolo, mais uma vez, tenta a sorte para salvar a esposa do rei, junto da Morte.

MORTE
Ah! Ah! Porque estás tu ao pé do palácio? Porque andas aqui à volta, Febo? De novo cometes injustiça, usurpando e abolindo as honras dos deuses infernais? Não te bastou impedir a morte de Admeto, enganando, com ardilosa habilidade, as Parcas? E ainda agora, com a mão armada de arco, proteges esta mulher, que prometeu libertar o marido, morrendo por ele, a filha de Pélias!

APOLO
Está tranquilo: observo a justiça e tenho boas razões.

MORTE
Então que necessidade tens de arcos, se defendes a justiça?

APOLO
Estou habituado a trazê-lo sempre comigo.

MORTE
E a vires injustamente em auxílio desta casa.

APOLO
Aflijo-me com as desgraças de um homem amigo.

MORTE
Vais despojar-me de um segundo cadáver?

APOLO
Mas o outro não to tirei pela força.

MORTE
Então como está ele sobre a terra e não debaixo dela?

APOLO
Em troca dei-te a esposa que tu agora vens buscar.

MORTE
E que vou levar para os Infernos, para debaixo da terra.

APOLO
Toma-a e vai. Não sei se serei capaz de te persuadir.

MORTE
A matar o que me pertence? É a minha função.

APOLO
Não, mas a conceder um adiamento aos que estão para morrer.

MORTE
Compreendo agora o teu pensamento e o teu desejo.

APOLO
Há então maneira de Alceste chegar à velhice?

MORTE
Não; pensa que também eu me regozijo com as honras.

APOLO
De qualquer modo não vais levar mais do que uma vida.

MORTE
Quando os homens são jovens é maior a honra que eu granjeio.

APOLO
Mas, se morrer velha, será sepultada ricamente.

MORTE
A lei que estás a promulgar, ó Febo, é a favor dos ricos.

APOLO
Como dizes? Serás acaso sofista sem que se saiba?

MORTE
Comprariam a morte na velhice, aqueles que podem.

APOLO
Não estás então decidida a conceder-me este benefício?

MORTE
Certamente que não; já conheces o meu carácter.

APOLO
Sim: odioso aos mortais e detestado pelos deuses.

MORTE
Não poderás ter tudo aquilo que não deves.

Atenção: quem não quiser saber o fim não leia daqui para a frente.
Quase no final, Hércules (Héracles, em Grego) diz-nos o que vai fazer para recuperar Alceste e devolvê-la ao marido:

HÉRACLES
(...) Irei espiar a Morte, a senhora dos mortos de negro manto, e hei-de encontrá-la, penso eu, junto do túmulo a beber o sangue das vítimas. E se eu me precipitar do meu lugar de emboscada e a apanhar, envolvê-la-ei com os meus braços e não haverá ninguém capaz de libertar os seus flancos doridos antes que me seja entregue a mulher. Mas se falhar esta presa, se ela não se aproximar da oferenda sangrenta, descerei aos Infernos, às sombrias moradas de Core e do Senhor, e farei a minha súplica. (...)

Quando a leva, finalmente, à presença de Admeto, não lhe diz que aquela mulher velada é a sua esposa e, indirectamente, conta-nos que foi a primeira hipótese que sucedeu, isto é, que foi mesmo andando à pancada com a Morte que recuperou Alceste:

HÉRACLES
(...) Chegou às minhas mãos à custa de muita fadiga. Encontrei uns homens que organizavam uns jogos públicos, digno objecto do esforço dos atletas, e destes jogos a trouxe, como prémio da vitória. Os vencedores das provas ligeiras ganhavam cavalos e os vencedores das provas mais pesadas, pugilato e luta, rebanhos de bois; para estes últimos havia o prémio suplementar de uma mulher. Ora, como eu me encontrava ali, seria desonra abandonar esta presa gloriosa. Portanto, como te disse, é a ti que confio esta mulher, que não roubei. Trago-ta, depois de a ter ganho com o meu esforço.