02 julho 2008

Cá para mim, a Morte é comunista...

Pilhas e mais pilhas. Encontro Eurípides e releio Alceste (tradução de Manuel de Oliveira Pulquério e Maria Alice Malça, Ed. Verbo, 1973). Tem partes mais trágicas e outras mais divertidas, mas sempre com a finura intelectual de Eurípides.
Vou deixando pedaços por aqui.

Chegou a hora de Admeto, rei de Feras, morrer, coisa que não lhe agrada. Cobra, então, do deus Apolo, uma velha dívida e este embriaga as deusas do destino para que estas aceitam que morra outra pessoa em sua vez (se alguém aceitar tal troca). Todos se negam: pai, mãe, amigos. Só a mulher, Alceste, o faz. Apolo, mais uma vez, tenta a sorte para salvar a esposa do rei, junto da Morte.

MORTE
Ah! Ah! Porque estás tu ao pé do palácio? Porque andas aqui à volta, Febo? De novo cometes injustiça, usurpando e abolindo as honras dos deuses infernais? Não te bastou impedir a morte de Admeto, enganando, com ardilosa habilidade, as Parcas? E ainda agora, com a mão armada de arco, proteges esta mulher, que prometeu libertar o marido, morrendo por ele, a filha de Pélias!

APOLO
Está tranquilo: observo a justiça e tenho boas razões.

MORTE
Então que necessidade tens de arcos, se defendes a justiça?

APOLO
Estou habituado a trazê-lo sempre comigo.

MORTE
E a vires injustamente em auxílio desta casa.

APOLO
Aflijo-me com as desgraças de um homem amigo.

MORTE
Vais despojar-me de um segundo cadáver?

APOLO
Mas o outro não to tirei pela força.

MORTE
Então como está ele sobre a terra e não debaixo dela?

APOLO
Em troca dei-te a esposa que tu agora vens buscar.

MORTE
E que vou levar para os Infernos, para debaixo da terra.

APOLO
Toma-a e vai. Não sei se serei capaz de te persuadir.

MORTE
A matar o que me pertence? É a minha função.

APOLO
Não, mas a conceder um adiamento aos que estão para morrer.

MORTE
Compreendo agora o teu pensamento e o teu desejo.

APOLO
Há então maneira de Alceste chegar à velhice?

MORTE
Não; pensa que também eu me regozijo com as honras.

APOLO
De qualquer modo não vais levar mais do que uma vida.

MORTE
Quando os homens são jovens é maior a honra que eu granjeio.

APOLO
Mas, se morrer velha, será sepultada ricamente.

MORTE
A lei que estás a promulgar, ó Febo, é a favor dos ricos.

APOLO
Como dizes? Serás acaso sofista sem que se saiba?

MORTE
Comprariam a morte na velhice, aqueles que podem.

APOLO
Não estás então decidida a conceder-me este benefício?

MORTE
Certamente que não; já conheces o meu carácter.

APOLO
Sim: odioso aos mortais e detestado pelos deuses.

MORTE
Não poderás ter tudo aquilo que não deves.

Atenção: quem não quiser saber o fim não leia daqui para a frente.
Quase no final, Hércules (Héracles, em Grego) diz-nos o que vai fazer para recuperar Alceste e devolvê-la ao marido:

HÉRACLES
(...) Irei espiar a Morte, a senhora dos mortos de negro manto, e hei-de encontrá-la, penso eu, junto do túmulo a beber o sangue das vítimas. E se eu me precipitar do meu lugar de emboscada e a apanhar, envolvê-la-ei com os meus braços e não haverá ninguém capaz de libertar os seus flancos doridos antes que me seja entregue a mulher. Mas se falhar esta presa, se ela não se aproximar da oferenda sangrenta, descerei aos Infernos, às sombrias moradas de Core e do Senhor, e farei a minha súplica. (...)

Quando a leva, finalmente, à presença de Admeto, não lhe diz que aquela mulher velada é a sua esposa e, indirectamente, conta-nos que foi a primeira hipótese que sucedeu, isto é, que foi mesmo andando à pancada com a Morte que recuperou Alceste:

HÉRACLES
(...) Chegou às minhas mãos à custa de muita fadiga. Encontrei uns homens que organizavam uns jogos públicos, digno objecto do esforço dos atletas, e destes jogos a trouxe, como prémio da vitória. Os vencedores das provas ligeiras ganhavam cavalos e os vencedores das provas mais pesadas, pugilato e luta, rebanhos de bois; para estes últimos havia o prémio suplementar de uma mulher. Ora, como eu me encontrava ali, seria desonra abandonar esta presa gloriosa. Portanto, como te disse, é a ti que confio esta mulher, que não roubei. Trago-ta, depois de a ter ganho com o meu esforço.


4 comentários:

Joaquim Moedas Duarte disse...

Que maravilha:a Xantipa a acordar pela fresquinha e a citar um clássico cheio de frescura...
Obrigado pelo esforço. Os clássicos esperam-me, eu sei. Tenho-os ali, volta e meia folheio, a tomar balanço...

Fica bem!

JCA disse...

mais uma, pequena, história de Hércules, e com o cheirinho a jogos olímpicos que estão quase aí... bem que na altura deste herói eram bem diferentes... mas também a forma de politicar era bem diferente.

effetus disse...

Como sempre, uma resenha bem contada! Um manancial de conhecimentos que transmite e nos obriga a pensar... e a ler!
E como gosta de outros saberes e tem muita sensibilidade, sugiro-lhe que veja o vídeo de Benjamin Zander, que refiro no meu sítio.
(perdoe o atrevimento, mas penso que irá gostar).
Um abraço.

Xantipa disse...

Caro Méon,
Gosto que gostem do que gosto e não me canso de mostrar os «meus» clássicos.
:)

QJ
A forma de politicar, em muitas coisas, era bem parecida. Nas más coisas.
:(

Caro Tony,
Diverti-me muito com o B. Zander!
Obrigada!
:)