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03 julho 2010

«As lendas só são lendas porque acreditamos nelas»

Não assisti ao encontro sobre este assunto, mas fiquei muito orgulhosa por ver os meus colegas Isabel Cardigos e José Joaquim Dias Marques justamente destacados na peça.
Parabéns a ambos!
(clique na etiqueta «lendas urbanas» e poderá ler mais)

25 março 2008

«tudo o que alguma vez quiseste saber sobre as (mal) chamadas lendas "urbanas", mas nunca ousaste perguntar» - Parte 2 e última

Continua a entrevista, completa, de Bruno Pires (que também também é o autor das fotos) a JJ:

Outras das lendas a circular recentemente, dá conta que há raptos de pessoas nas lojas chinesas para lhes tirarem os órgãos...
Sim, aqui há coisa de uns dois anos, correu imenso a lenda de que havia o rapto de pessoas nas lojas chinesas para tráfico de órgãos. Isso é uma lenda viva, são coisas que as pessoas contam muito. Há uma colega aqui da faculdade, uma professora, que ouviu contar a lenda à mãe (que é enfermeira), para ter cuidado com essas lojas de Loulé porque houve uma pessoa que foi raptada aí. Às vezes, há a ideia de que estas lendas são contadas por pessoas novas e muito crédulas, ou então, velhas e de pouco discernimento. Não é verdade. As lendas são contadas por gente de todas as idades e níveis de instrução e são coisas que estão verdadeiramente vivas na nossa sociedade.

Esta lenda é nova?
Parece uma coisa recente, mas não é. Esta ideia de que há um grupo de pessoas, normalmente estrangeiros, que rapta gente para lhes tirar os órgãos em seu
benefício está registada pelo menos desde o século XVIII. Em Lyon, França, houve uma revolta das pessoas mais pobres da cidade que invadiram a faculdade de medicina, porque se dizia que os cirurgiões raptavam crianças para as dissecarem. E, segundo outra versão, dizia-se que lá dentro vivia um príncipe a quem faltava um braço. Então, todas as noites raptavam uma criança na esperança de arranjarem um braço que servisse. Claro, que em ambas, os maus são pessoas de uma classe superior, gente tão estranha que é quase estrangeira, e da qual se pode esperar tudo, exactamente como agora no caso das versões sobre as lojas chinesas. O que é de facto impressionante é que no século XVIII era impossível fazer transplantes, mas as pessoas acreditavam. Esta lenda conta-se, por exemplo, relativamente à América do Sul. Contou-se há anos relativamente a Moçambique.


A Internet também é campo fértil para este mitos...
A transmissão da literatura oral por via escrita não é uma coisa
recente, nem pouco mais ou menos. Os impressores que publicavam as primeiras edições de livros no século XV já publicavam folhetos com textos de origem oral. Portanto, isso é velho como a imprensa.Claro que no passado, antes de uma lenda como esta do roubo de órgãos humanos chegar a outro continente, teria que passar muito tempo. Hoje basta carregar num botão. E há realmente muitas lendas a circular na Internet, enviadas por e-mail, que são apresentadas como um facto.

Porque é que estas lendas surgem?

Porque interessam às pessoas, têm a ver com as suas ideias, os seus medos. Já no império Romano se contava que os Cristãos raptavam crianças para lhes tirarem o sangue para os seus ritos. Mais tarde, na Idade Média, os Cristãos diziam o mesmo em relação ao Judeus. E isto tem claramente a ver com a lenda do roubo de órgãos. Acho que estas lendas nunca morrem. Estão cá sempre. Nalguns casos é difícil perceber porque é que estas lendas voltam a ser contadas. Noutros casos, como o roubo dos órgãos nas lojas dos chineses, tem a ver com o medo do outro, que é universal - é a reacção ao aparecimento duma vaga de lojas de que as pessoas desconfiam, por serem coisa nova, de estrangeiros, e se dizer que são más para as lojas dos portugueses.

Mas no mundo moderno, informado e globalizado de hoje é difícil acreditar que se dê credibilidade a estas coisas, ou não?
Acho que muitas das coisas que se dizem sobre a globalização são
ditas sem reflexão histórica. Hoje diz-se que as crianças só querem pizzas e hambúrgueres e videojogos americanos, e que ninguém liga às nossas tradições. Bom, já pensou que o cristianismo, algo tão ligado à tradição europeia, é uma religião oriental? Nasceu no Oriente, difundiu-se na Europa através dos Romanos e veio abafar todos os deuses que existiam nos países europeus. Essa substituição foi de tal maneira forte que nós hoje, pouco ou nada sabemos sobre a religião dos nossos antepassados Lusitanos. Sabemos o nome de um ou dois deuses, mais nada. Mais nada. Portanto esta ideia de que a globalização é uma coisa digital, dos dias de hoje, não é verdade.


Mas como é possível que as pessoas acreditem neste tipo de coisas?
Bem, essa questão que me coloca é fruto de teorias filosóficas que,
penso, não são anteriores ao século XVIII e ao Iluminismo. Era a ideia de que a instrução muda as pessoas. Ensinando as ciências, factos, as coisas positivas (que se podem experimentar), as pessoas iriam recusar tudo o que é sobrenatural. No século XVIII, acreditava-se que a Humanidade vivia um estádio intermédio em que os pouco instruídos ainda estavam muito ligados ao sobrenatural, mas que as elites instruídas, sobretudo republicanos e anticlericais, já tinham ultrapassado essa fase. E acreditavam que, no futuro, a religião desapareceria porque não faz sentido e todas as coisas se explicam pela ciência. A verdade é que isto não é assim. Aquilo que os factos provam, é que a esmagadora maioria da população ocidental não chegou a esse estado previsto pelos positivistas. Repare, hoje em dia está na moda o New Age, e tudo aquilo que tem a ver com as antigas filosofias orientais está vivíssimo. E não apenas entre o povo, mas pelo contrário nas classes médias e altas. Repare, na Rússia, ao fim de anos e anos de anti-religião, quando o regime caiu, as igrejas encheram-se de novo.


Então, acha que o sobrenatural há-de acompanhar sempre a espécie humana?
Chamemos-lhe o irracional. Acho que sim. Acho que faz parte de nós. Repare, mesmo uma pessoa que não acredita em nada, se um dia for confrontada por um cancro, e depois de ir a todo o tipo de médicos sem sucesso, é capaz, em desespero de causa de ir a um curandeiro que lhe promete uma cura. A pessoa pode não acreditar positivamente naquilo, mas põe essa possibilidade. Acho que a grande maioria de nós, quando se vê numa situação de grande perigo, ou recorrerá à oração, ou recorrerá, enfim, a este tipo de coisas que o raciocínio e a razão não provam. É quase inevitável pensar na possibilidade de tentar. Em última análise, acho que é o mesmo que se passa com as lendas urbanas. Acho que as pessoas acreditam nelas porque falam daquilo que temem, dos seus medos e anseios.

24 março 2008

«tudo o que alguma vez quiseste saber sobre as (mal) chamadas lendas "urbanas", mas nunca ousaste perguntar» - Parte 1

Foi com estas palavras que o meu colega e amigo JJ introduziu o mail em que enviava uma entrevista que dera havia uns tempos a um jornal de Portimão, algo que eu já lhe andava a pedir há uns meses.
Este assunto das
lendas urbanas sempre me interessou, mas nunca o estudei a fundo. Porém, como verão na entrevista que deu ao Algarve 1,2,3 (publicado em três línguas), ele sabe muito disto e explica ainda melhor. Com a devida autorização do jornalista Bruno Filipe Pires, do suplemento Viva Algarve, desse mesmo jornal, aqui transcrevo na íntegra (inclusive partes que não chegaram a ser publicadas) a conversa que este manteve com o meu amigo JJ:

Às vezes, algures numa curva perto de Boliqueime, os noctívagos vindos de uma noite de diversão numa discoteca próxima avistam uma rapariga que pede boleia. Há quem jure que se trata de uma alma penada que desaparece misteriosamente de dentro do carro de quem pára para a levar. Outros juram que há quem acorde sem rins a esvair-se em sangue dentro de uma banheira cheia de gelo, depois de uma simples ida às compras numa cidade algarvia. Mentira? Realidade? O que é facto é que as chamadas lendas urbanas estão bem vivas e andam na boca de toda a gente. Qual a sua origem? Devemos ou não acreditar? O vivalgarve falou com Dias Marques (Lisboa, 1956), professor na Universidade do Algarve e um dos pioneiros em Portugal a estudar as chamadas “lendas urbanas”…

Lendas urbanas – realidade ou ficção?
Na sua opinião, o que é uma lenda urbana?

Isso é muito difícil de explicar. A terminologia de lenda urbana
é uma coisa que herdámos dos estudiosos de língua inglesa. Sobretudo dos estudiosos norte-americanos, que foram os primeiros a estudá-las. Inicialmente, os investigadores achavam que se tratavam de lendas recentes. E que provavelmente só existiam nas cidades. Outros autores chamam-lhes lendas modernas ou contemporâneas. No fundo, é a ideia de que são lendas diferentes das que existiam no passado.


Quando surge essa ideia?
Os primeiros artigos académicos apareceram nos Estados Unidos nos anos 1940. Os primeiros autores insistiam muito em que estas lendas eram coisas modernas. E que mostravam que a literatura oral estava viva. Ao contrário do que se pensava, a tradição oral continuava a nascer e precisava de ser estudada. Contudo, com o andamento dos estudos, determinados investigadores começaram a aperceber-se, que muitas destas lendas não são modernas. São sim a adaptação moderna de coisas muito antigas.

Dê-me um exemplo…
Por exemplo, a lenda da rapariga fantasma que pede boleia na
curva. É uma lenda que ficou conhecida como “The Vanishing Hitchhiker”. Foi uma das primeiras a ser estudadas, salvo erro em 1942. Nunca ninguém se tinha debruçado sobre aquela lenda. Na altura, as diferentes versões que os investigadores estudaram envolviam todas automóveis. Então, concluíram que aquela lenda era muito moderna e que só podia ter surgido depois da invenção do automóvel e da banalização do seu uso. Contudo, mais tarde, nos anos 80, surge um estudo que refere um manuscrito sueco de 1602, no qual está registado um subtipo desta lenda do fantasma que pede boleia. Mas admito que muitas destas lendas sejam de criação moderna…

Qual a diferença entre lendas e contos?
As lendas são narrativas, em prosa tal como os contos. Mas falam de uma coisa que o informante (a pessoa que conta) acredita que é verdade. Ou pelo menos, uma coisa sobre a qual o informante põe o problema da verdade. Por exemplo, quando alguém diz “vou-te contar uma coisa, para que quando passares pela curva da Kadoc não te aconteça nenhum problema. Se passares por lá e te aparecer uma rapariga a pedir boleia, não pares. É um fantasma”, e conta-o como se fosse um facto. Um primeiro grupo de pessoas acha que é uma coisa verdadeira. Um segundo grupo acha que eventualmente pode ser uma coisa verdadeira. E mesmo aqueles que não acreditam que há uma rapariga morta que pede boleia, ao não acreditarem, já colocam a questão da verdade. Nos contos, ninguém coloca a hipótese de o que se conta ser verdade. Por exemplo, ninguém diz “não acredito que tenha havido a Gata Borralheira” (“Cinderella”).

No Algarve, conta-se muito essa história da rapariga fantasma que pede boleia. É sempre associada a uma curva perto de uma discoteca em Boliqueime. Porquê?
Bem, as lendas são vistas pelos informadores como coisas
verdadeiras. Uma das estratégias para mostrar que são verdadeiras é ligá-las a um determinado lugar conhecido. Ao contrário dos contos, que se passam num lugar e num tempo indeterminado, as lendas associam-se a lugares, situações e contextos próximos das pessoas para criar verosimilhança. Esta lenda da curva da discoteca Kadoc conta-se em vários lugares de Portugal. Conta-se por exemplo, sobre um cemitério do Cairo. Conta-se, por exemplo, sobre uma localidade da Mongólia. Conta-se sobre vários cemitérios do Brasil…

Fale-me dessas versões.
Há versões que dizem que há um rapaz
que conhece uma rapariga num baile. No final, ele acompanha-a a casa. Está frio e ele empresta-lhe um casaco. No dia seguinte, o rapaz regressa à casa da rapariga onde a acompanhou para recuperar o casaco. Os familiares abrem-lhe a porta e dizem que ela morreu há muitos anos. O rapaz não acredita, e a família, para lhe provar, leva-o ao cemitério onde ela está enterrada. Em cima da campa, está o casaco. Este subtipo de “The Vanishing Hitchhiker” parece uma coisa muito diferente. Mas, no fundo, o fulcro é sempre o mesmo – existe um outro mundo. E existe comunicação desse outro mundo com este nosso. E daí, o encontro de um ser vivo com um ser morto, que é julgado pelo ser vivo como estando vivo. É uma ideia comum a ambos os subtipos desta lenda. Há sempre uma prova que o ser vivo esteve a falar com um fantasma: ou a rapariga desaparece de dentro do carro em andamento, ou há o casaco que ele lhe emprestou aparece sobre a campa.


(Estão a gostar? Ainda bem. Continua aqui. Os links no texto são da minha responsabilidade)