18 janeiro 2009

Afinal não era literatura oral...

O meu pai contava-me histórias de terror, mas eu não tinha medo nenhum!
Devia ser porque ele era muito expressivo e eu ria-me.
Ouvi esta tantas vezes que a aprendi de cor.
Um dia, em conversa com o meu digníssimo colega Dias Marques ( JJ para os amigos), o homem da literatura oral (e agora das lendas urbanas - ops! lendas vivas é que é!), contei-lhe e ele conseguiu identificar o autor (tenho de lhe voltar a pedir a informação, pois não me lembro de quem era, apenas que era do séc. XIX).
Para mim era literatura oral. Cá vai:

Vem cá, meu Paulo, escuta: és amigo de tua mãe?
- Oh, minha mãe, que pergunta!
- Basta, meu Paulo, pois bem. Faz 20 anos – e dizendo, tira do seio um punhal - que teu pai morreu a golpe deste ferro, para meu mal, e eu, para vingá-lo, fiz uma jura fatal...
- Uma jura? Mãe santíssima! Oh, minha mãe, o que jurou?
- Jurei por este sangue, que em ferrugem se tornou, que tu matarias aquele que teu pai matou. Matas?
- Mato.
- Matas, seja quem for?
- Mato.
- Ainda que a vingança te tire ao seio o amor?
– Mato.
- Toma este ferro, é Ricardo o matador.
- Ricardo, o pai de Maria? Oh, minha mãe, perdoai...
- Pela amante o pai esqueces, filho ingrato? Parte, vai! Cumpre a jura ou sê maldito se não vingas teu pai.
Nessa noite, tinto em sangue e com os cabelos no ar, o assassino de Ricardo vai aos pés da mãe lançar o punhal com que jurara a morte do pai vingar.
Ri-se a velha de contente e abraça o vingador, mas eis senão quando aparece na porta uma estátua de dor:
- Paulo, meu Paulo, perdi meu pai, não vês? As lágrimas que aqui derramo assistiram ao seu fim. Quis falar-me e já não pode, com os olhos fixos em mim. Tu vingas-me, meu Paulo, sim?
- Vingo, Maria, sossega, eu sei quem teu pai matou, vai morrer com o mesmo ferro que ainda há pouco o transpassou.
E pegando no punhal no próprio peito o cravou...
Foge a triste espavorida, deixa Albano sem parar, chega a Roma ao outro dia, por toda parte a gritar:
- "Quem me mata por piedade, quem me acaba de matar?"
E assim vagueou três dias e ao quarto enlouqueceu.

Por isso o viajante, quando passa ao Coliseu, ouve a triste às gargalhadas, vingança pedindo ao céu!

8 comentários:

António Conceição disse...

Bela história.
Com o meu sentimento borgeano, ao ouvir pela primeira vez a fala da mãe, eu estava a imaginar que iria dizer que ela própria fora a matadora do pai e o filho teria, depois, que matar a mãe. A história não se desenvolveu imediatamente assim, mas não se afastou desta regra própria da tragédia. Por vias travessas, lá chegou.

Xantipa disse...

Pois é, caro Funes. Paulo escapou-se de ser um Orestes, mas continuou a ser trágico (lembro-me do seu comentário a um outro post meu me que diz que tudo se resume a meia dízia de enredos de tragédias).
Um abraço

Gi disse...

E lembravas-te da história toda, com rimas e tudo?
Achei particularmente interessante passar-se entre o monte Albano e Roma. Parece o resumo de um libretto de ópera.

Xantipa disse...

Isto, querida Gi, é como eu me lembro. As rimas são o que ajuda a memorizar. Não conheço o tal original...
:)

silvioafonso disse...

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Oral, ora bolas! Só oral. Via oral, de hora em hora, pela boca ou a contar as horas. Ora, ora, que horas são que eu vou embora?

silvioafonso.






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Tiago Taron disse...

Gostava de ler mais, gostava de as desenhar, lembro-me sempre dos desenhos das histórias de terror e de não resistir a vê-los todos antes de as ler, para antecipar o gozo da aflição que ia sentir. Por momentos pensei que era a história de terror cantada por Caetano Veloso e que começa "Sai o Pastor da Choupana" (aí é a amada do Pastor que lhe pede que mate a mãe e lhe traga o seu coração, no caminho, acto consumado, o Pastor cai e o coração também, que ainda bate e lhe pergunta: "meu filho, meu coração, você se aleijou?"

redonda disse...

Que história mais triste e terrível.

Anónimo disse...

Que história maravilhosa!Se ma contassem, também lhe atribuiria a rotulagem da oralidade.