29 março 2010

Não há maiores cegos do que aqueles que não querem ver

Grave, grave, grave.
Grave, grave, grave.

Para lermos com muita atenção, pois não se passa só em Itália.

Texto
(está no blogue e no facebook) de Fernando Mora Ramos, encenador do Teatro da Rainha:


Porque é que não tenho aulas de Português?

Esta pergunta é feita por uma jovem de um curso de teatro de âmbito politécnico. Ela sabe que não conhece a língua e sabe que um licenciado em teatro deveria saber português – um dia, se escapar ao desemprego de longa duração, poderá até vir a dar aulas. Inscreveu-se numa cadeira de Técnicas de Expressão do Português mas eram tantos que nunca conseguiu ouvir a professora no meio da barulheira. Mas valeu a pena saber, através de umas fichas, que cozer e coser tinham significados diferentes. Ela também não sabia que o Teatro de Stanislavski se chamava Teatro de Arte de Moscovo e que a gaivota do pano de boca se referia à peça de Tchecov, A gaivota.

Pego no La Repubblica de oito de Dezembro e vejo um título: “Italiano quase desconhecido: estudantes quase analfabetos”. Trata-se de um trabalho jornalístico de Maurizio Crosetti que realiza um pequeno inquérito ao estado do italiano nas Universidades – Universidades, repito. E à pergunta, como nasce um analfabeto? Quando é que começa a sê-lo? Tullio di Mauro, o pai dos estudos linguísticos italianos diz: “o facilitismo dos docentes provocou danos enormes, promovendo todos e não barrando o caminho a quem não está à altura. Mas o desprezo da língua italiana está também em certos romances de novos autores, cheios de palavrões e abreviaturas, e na linguagem cada vez mais desleixada dos jornais de onde quase desapareceu a riqueza da pontuação”. Para além de um aparente conservadorismo desta posição, e não sei se o será, a questão relevante será a de que, mesmo para transgredir a norma é necessário dominar a norma e não desconhecê-la, fixando a aberração e o desleixo como regra, regra intuitiva de possibilidades de uso da língua em regressão. E a propósito diz, no mesmo artigo de jornal o linguista Gian Luigi Beccaria: “Agora é necessário alfabetizar adultos e jovens, e a culpa é de um inteiro percurso escolar que nem sempre funciona. As lacunas vêm de longe. Além disso, o uso exclusivo do telemóvel e do computador como instrumentos de comunicação não ajuda a nossa língua: o italiano está quase a regredir para dialecto. Deixando perder parte da narrativa contemporânea, onde será possível construir um tesouro de língua adequada? Lendo e relendo autores exemplares pela limpidez do estilo e clareza: penso em Primo Levi, em Calvino, mas também em Pirandello e Pavese”.

Segundo dados do Centro Europeu de Educação oito por cento dos licenciados não consegue na Itália usar a escrita convenientemente – em Portugal qual será a percentagem, será sequer possível vir a saber? Mais grave do que isso, 21 licenciados em 100 não atingem o nível mínimo de decifração de um texto. O mais longe que vão, lendo instruções de uma bula, é intuir as contra-indicações da aspirina. Mas não mais. E acrescenta o estudo: um licenciado em cinco não é capaz de resolver uma ambiguidade lexical e os cem livros que tem em casa serviram-lhe apenas para tirar o diploma.

O império do inglês de uso corrente é também sinalizado como um factor de regressão do próprio italiano. Em reacção a este quadro, diagnosticado como catastrófico – e deveria existir esta categoria para entender que as catástrofes são também culturais, e éticas, para além das naturais – em Itália proliferam agora cursos de recuperação do Italiano para toda a gente.

Que dizer destes dados aplicados ao caso português? Da minha própria experiência, ao pôr em cena uma peça numa escola superior de ensino, verifiquei que cruzes gamadas ninguém sabia o que era. Isto é, todos pensaram que eram mesmo gamadas e ninguém percebeu do que se tratava. Quando descobriram que gamadas e suásticas eram sinónimos, a peça ( de Thomas Bernhard) atraiu-os de modo arrebatador porque tudo se alterava quanto ao sentido. Enfim, é ter a besta diante e não ter os instrumentos da a perceber. Entre nós, a anedota, como uma variante do chico-espertismo nacional – dizem-na humor, nobilitando-a – virou instituição mediática, isto é, poder e verdade nacional. A fuga para frente, ou para o lado, que representa a obsessão da graçola, rasteira, trocadilho, silogismo rasca, e este frenesim que põe tudo aos saltos nos concursos televisivos de cultura geral faz a escola. O rei vai nu e ninguém o vê porque na realidade estão a pensar onde deixou o rei a roupa. Que cegueira será esta? E diz a Maria Parda a propósito da sua fome de vinho não vendo sardinhas à porta das tabernas: “Triste quem não cega em ver / nas Carnecerias Velhas/ muitas sardinhas nas grelhas/mas o demo há de beber.” Existe uma cegueira do excesso, uma incapacidade de pensar sob o impacto da babel de signos em que submergimos e que as políticas aumentam e subscrevem.

1 comentário:

Joaquim Moedas Duarte disse...

Texto oportuníssimo sobre uma realidade culturalmente aterradora!
Sinto isto, e de que maneira. Também fui professor de Português...
Como dar a volta a isto?

Vivemos uma nova invasão dos bárbaros. Sabemos no que isso dá: mil anos de trevas! ( Sim, eu sei, a Idade Média não foi assim tão má! e blá-blá-blá! Como se ela não tivesse sito o reino da estupidez clerical, onde, felizmente, resistiram algumas clareiras de luz...)