16 janeiro 2007

«Quando o presidente da república visitou Monchique por mera curiosidade»

Hoje fui à escola EB2-3 de Monchique, com a minha colega Alexandra Mariano, apresentar uma palestra intitulada Latim não há outra língua assim! Aproveitámos o título do nosso antigo colega Luís Miguel, e lá fomos nós falar do que gostamos.
Além disso, também gosto muito de ir a Monchique e a esta escola, onde orientei estágios pela Universidade do Algarve, em 1996.
Nesse ano, numa livraria em Lisboa, antes de alguma vez ter ido àquela bela terra, vejo este título: Quando o presidente da república visitou Monchique por mera curiosidade, da autoria de
António Manuel Venda (Pergaminho). Não resisti e comprei!
Que bela surpresa!
Deliciei-me com os contos fantásticos deste (então recente) escritor, que eu desconhecia. Tirando a primeira história, todas as outras se situavam em terras e terreolas que nesse ano passariam a ser minhas conhecidas, como Marmelete ou Alferce.
Não consegui encontrar a capa do livro na net e o meu exemplar está encaixotado (como metade da minha vida, aliás).
Fica aqui um bocadinho para abrir o apetite. O conto integral podem ler aqui.
Bom proveito!

A BRUXA DO BAIRRO ALTO DE S. ROQUE

O século ainda ia novo mas a vida, que às idades não parecia ligar muito, já andava outra vez agitada por Lisboa. Ele era milagres de Santo António dia sim dia não, ele era as pessoas a falarem do anjo que alguém tinha avistado no alto da torre da igreja de Nossa Senhora da Graça, ele era ainda outras criaturas, talvez mandadas por Deus e observadas por quem jurava a pés juntos que não eram foliões mascarados. E o bispo inquisidor, enquanto tão grandes maravilhas eram relatadas, lá se ia entretendo a mandar queimar hereges e judeus, uns por coisas vistas, outros porque, bem vistas as coisas, não haveria no reino deles necessidade.
Tudo isto, que já não era pouco, ia acontecendo ao mesmo tempo que os castelhanos arranhavam por terra a toda a hora e os franceses picavam por mar de vez em quando. E para ajudar à festa, El-Rei Todo Poderoso, o quinto João com que o reino alombava, ainda se punha a morder dentro das próprias fronteiras com impostos tais que a riqueza de jóias e vestes que à corte se via nunca antes fora assim notada. Mas o povo não era tão desligado como deixava parecer a quem o observava das varandas reais, e por isso nem a desculpa do ouro de terras de Santa Cruz o convencia de que nesses altos enxovais não figurava moeda plebeia.
Os casos de admirar eram tantos que os novos logo abafavam outros já bem repisados. E conseguiam-no mais pela força que tinham do que pela falta dela nos anteriores, pois cada um que surgia deixava três ou quatro para trás em matéria de falatórios. Nunca se pensara que no reino pudessem vir a caber todos, mas eles iam cabendo, e isso era uma coisa que ninguém desmentia, tanto mais que Deus também não dava mostras de querer fazê-lo.
Foi por esses tempos que se começou a falar na Bruxa do Bairro Alto de S. Roque. Inês Duarte, que tinha sido o nome que ao baptismo lhe calhara, apareceu de repente aos olhos de todos como uma criatura destinada a tornar ainda mais notável aquele ano de mil setecentos e seis. Deu-se isso de forma tão espantosa que o bispo inquisidor se encarregou de a levar assim que o caso lhe chegou aos ouvidos. E decerto que não iria tardar muito a mandar queimá-la no Rossio, de bruxas e feiticeiros acompanhada, numa fogueira bem grande, que assim era ao gosto do povo, assim D. João aprovava, assim Deus não se opunha, tão-pouco o Diabo, que esse toda a gente dizia ser das chamas apreciador certo.
A bruxa saiu à rua só com a pele do corpo, despida de cima a baixo, ou de baixo acima. Ao povo tanto fazia a subir como a descer, que os olhos viam o mesmo e a nudez não mudava vista de uma maneira ou de outra. E na frente de todos a criatura fartou-se de com as mãos dar prazer ao corpo, enquanto perguntava bem alto se por perto havia alguns homens em jeito de a comerem. E houve muitos, pois a tarde já ia adiantada e andavam muitas almas na rua, como era preceito a uma hora assim na cidade toda. Contaram-se por sete os homens que se lhe atiraram e por muito mais do que essa conta os que com grande pena lugar não conseguiram, e o mulherio gritou impropérios tais à tão diferente Inês que mais diferente a fez ainda. E houve sangue da perda da virgindade, e houve quem dissesse que um bicho assim não podia ser virgem, e houve ainda opiniões de que sendo sete os machos não havia mulher que resistisse por mais de má vida que fosse.
Ao sangue não ligou o bispo inquisidor, pois esse só queria a bruxa, sangrada ou por sangrar... (ler o fim aqui)

4 comentários:

Anónimo disse...

Quando saíres, minha Querida, não te esqueças de fechar a porta devagarinho, com muito cuidadinho para ver se só trazes as alegrias e deixas ficar as tristezas.
Renovação é uma palavra importante.

O conto uma delícia.

Fallen Angel disse...

Simplesmente tragado, devorado e digerido, querida Xantipa.

Beijos :-)

eu mesma! disse...

e eu a pensar que ias escrever qualquer coisa do Bochechas ou do Aníbal... o curisoso é que eu acho que já tinha lido esse conto..

Xantipa disse...

Querida Marta,
os teus conselhos são sempre sábios!
Beijinhos!

Querido Anjo,
Sabia que ias gostar!
Beijinhos!

Querida «Eu Mesma!» (ai a vontade de escrever «Tu Mesma»!)
Pois estes contos são bem mais divertidos que as viagens dos outros presidentes!
;)
O livros já é de difícil compra (na net não o encontrei nem na própria editora), mas se o encontrares, lê. Se já leste este conto, como te parece, pode ter sido na net, onde está disponível.
Beijinhos!