19 janeiro 2007

Sofistas sofisticados

O uso comum, em português, de sofisticado/a ou sofisticação não tem o sentido pejorativo que o seu étimo pressupõe.
A sofisticação tem como antónimos simplicidade, singeleza (v. Houaiss). Entendemos como sofisticado algo ou alguém que é requintado, elegante, fino. No entanto, a palavra também significa (sempre Houaiss):
1 enganado com sofismas
2 que foi alterado fraudulentamente; falsificado, adulterado
3 que tem subtileza ou utilidade sofística
4 que não é natural; postiço, artificial, afectado
5 falsamente intelectual ou rebuscado


Rocha Pereira diz que «a sophia designava a princípio uma forma qualquer de saber e acabou por tomar um sentido alheio a qualquer especialização».
Os sophistes eram, inicialmente, os detentores de sophia, tal como o sophos (ou o phronimos). Em Platão, esta palavra (sophistes) é usada para designar aquele que dá lições nas mais variadas matérias, mediante pagamento. Por isso, este filósofo quis distanciar-se, a si e a Sócrates, de uma identificação com os sofistas e, apesar de a palavra ser equivalente, Platão prefere o uso de philosophia ou dialéctica, para designar a sua actividade, afirmando que um sofista é «um imitador do sábio (sophos)» (Sofista, 268c).
Numa pólis em que o conhecimento era adquirido tradicionalmente através do convívio entre cidadãos da mesma classe, a possibilidade de gente de origens humildes, mas com dinheiro, aprender a artes da oratória, da gramática, etc, era um perigo para a estabilidade da sociedade.
As ideias dos sofistas da chamada «grande geração» (expressão de Popper para se referir, a Górgias, Hípias, Antifonte, entre outros): progresso, cosmopolitismo, humanismo e individualismo (como oposto de colectivismo e não sinónimo de egoísmo) e os debates em torno de questões como o fim da escravatura, a igualdade entre os homens ou a não superioridade de um nascimento nobre, agradaram a uma camada social, não oriunda da aristocracia, que terá visto no ensino dos sofistas a sua possibilidade de ascensão social. Foi dessa camada que, mais tarde, sairam os indivíduos que viriam a substituir Péricles ou instaurariam o processo contra Sócrates. Se, por um lado, as novas ideias e ensinamento dos sofistas lhes proporcionaram o acesso a cargos políticos, por outro esse ensino poderia levar a que outros, tal como eles próprios, tomassem o poder. E sabe-se que os chefes políticos que sucederam a Péricles foram sobretudo indivíduos ligados a profissões não consideradas «nobres», como comerciantes de cordoaria, de gado, de peles, de enchidos.
E assim temos descrições escarnecedoras dos sofistas, como esta de Aristófanes, n' As Nuvens, em que se afirma que o seu ensino levava um indivíduo a «aprender a safar-se duma condenação, a fazer uma citação em tribunal, ou a convencer com falinhas mansas», tudo isto por «um talento apenas» (o talento era uma moeda altíssima!), pois «eles têm lá, segundo se diz, duas teses ou raciocínios: o mais forte, ou lá o que é, e o mais fraco. Ora, um destes dois raciocínios, precisamente o mais fraco, garantem que tem cá uma lábia, que é capaz de vencer as causas mais injustas».
Quanto à aparência, riduculariza-os: «uma cor amarelenta, ombros estreitos, peito enfezado, língua comprida, cu pequeno, pixa grande».

(As citações deste texto seguem sempre a tradução de Custódio Magueijo (Pref., trad. e notas), Aristófanes, As Nuvens, Lisboa, Ed. Inquérito, 1984)

2 comentários:

Miguel G Reis disse...

Platão, Aristófanes, são da velha guarda aristocrática. Não admira que digam mal dos sofistas, os novos ricos. A descrição do Aristófanes faz lembrar as diferenças entre nobres, com o seu código de honra, e os burgueses, com o seu dinheiro. lol
Gostei imenso!

Beijinhos!
:)***

Xantipa disse...

Querido Miguel,
Obrigada! Ainda bem que gostaste!
Beijinhos!
:)***