24 janeiro 2007

A coerência do meu Sócrates

(morte de Sócrates, por Jacques-Louis David (1748-1825) no Metropolitan Museum of Art em New York)

Há quem lhe possa chamar outra coisa, mas eu (e muitos mais) continuo a achar que a morte de Sócrates foi uma prova de coerência. Sócrates acreditava na democracia e foi nela que viveu, questionando sempre em busca da verdade. No final, foi confundido com aqueles que buscavam vencer as discussões, deixando a verdade para segundo plano. Quando, depois de condenado a beber cicuta, aguardava na prisão que se avistasse do cabo Sounio o barco que viria da ilha de Delos (enquanto o barco não voltasse, numa viagem sagrada, não poderia haver mortes judiciais em Atenas), para que a pena pudesse ser executada, recusou a fuga.
Antes ser vítima de uma injustiça que cometer uma injustiça. Era o seu modo. Sócrates
acreditava no sistema, foi julgado pelo sistema e aceitou a decisão do sistema. Fugir seria pôr em causa a democracia, a base da sua vida na cidade.
Foi justa a decisão dos juízes? Acreditando em Platão ou Xenofonte, acreditamos que não. Acreditando em Aristófanes... quem sabe?
Eu, sua esposa, acho que o meu Sócrates era um bom homem que quis ser coerente até na morte (se calhar também já andava farto de cá andar...).
As leis são feitas pelos homens e por isso podem sempre ser aperfeiçoadas. A democracia permite-nos essa participação. Acontece que estamos, muitas vezes, adormecidos e somos, na maior parte das vezes, ignorantes.
Ora bem, por que me lembrei disto agora?
Porque anteontem vi televisão e irritei-me com a apresentadora (eu bem sabia que havia uma razão para não ver, mas tinha-me esquecido). Falo do Prós e Contras. A apresentadora mostrou-se manipuladora e pouco hospitaleira. Quando recebemos alguém em nossa casa, não devemos agredir quem não concorda connosco. Um programa com aquele título deveria ter um/a apresentador/a um pouco mais isento e com um papel de verdadeiro/a moderador/a.
Não foi o caso.
Já não vi do princípio, mas vi o suficiente. Um juiz (bastante educado, como, aliás, os outros convidados, que até falavam com a senhora num tom paternalista, de quem tem de ter paciência para quem não entende...) tentava explicar que havia uma lei. E enquanto não houver outra, é esta que tem de ser cumprida. Não descurando o aspecto humano da questão, claro.
Um outro senhor, muito moderado e educado, tentou explicar que havia ali duas situações legais a não serem misturadas: o rapto da criança por parte do pai (ainda não) adoptivo (o sargento condenado a 6 anos de cadeia) é uma coisa. O tribunal ter decidido que esse mesmo senhor e sua esposa tinham condições para serem pais adoptivos era outra coisa.
Independentemente de se achar que o sargento deve ser libertado, há que olhar para os assuntos com alguma distância. Não se defende a falta de emoção, mas a importância de uma análise ponderada dos factos.
A senhora apresentadora parecia os meus sofistas, numa exibição de argumentos sem sentido, achando, provavelmente, que quem ali estava não estaria a usar as palavras com a devida propriedade, necessitando ela (e nós, portugueses ignorantes) de esclarecimento.
Foi um programa que só não se tornou feio pelo alto nível dos convidados presentes. A eles agradeço o modo como me esclareceram esta questão.

9 comentários:

Anónimo disse...

Leia-se "razoabilidade".

Fallen Angel disse...

Misturar Sócrates e coerência é bizarro, pensei eu...

Mas depois lembrei-me que te referias decerto ao ateniense. ;-)

Beijocas.

Miguel G Reis disse...

Excelente postal!!! Upa, upa!

Concordo com o que dizes sobre o teu Sócrates, especialmente com:
«Antes ser vítima de uma injustiça que cometer uma injustiça. Era o seu modo. Sócrates acreditava no sistema, foi julgado pelo sistema e aceitou a decisão do sistema. Fugir seria pôr em causa a democracia, a base da sua vida na cidade.»

Não vi o programa, mas parece-me correctíssima a análise que fazes. Fica-me a impressão, talvez errada, de que a tal entrevistadora fez uso de uma certa demagogia populista, que apela sempre à audiência televisiva pouco informada (a maioria). As audiências são o ganha pão da TV e acabam sempre pro se tornar no cavalo de Tróia da discussão saudável e informada nos meios de comunicação!

Beijinhos!
:)***

Rui Oliveira disse...

Excelente artigo que subscrevo integralmente.

Aliás, ao falar deste assunto, por várias vezes referi o caso de Sócrates. Há uma lei e é dentro da lei que se deve resolver o assunto e os recursos estão longe de estarem esgotados.

Até tenho alguma simpatia pelo pai "adoptivo", mas desisti de ver o programa em 30 segundos (não o apanhei desde o princípio) quando vi a apresentadora falar com o advogado do pai biológico. Foi qualquer coisa de inacreditável, cheia de agressividade, má-educação, demagogia e sei lá que mais... Parece que queria linchar o homem em directo. No mínimo foi, e como diriam os franceses, dégueulasse.

Xantipa disse...

Querida Teresa,
Pois é. Razoabilidade.
Beijinhos!
:)***

Querido Anjo Caído,
Até tive de escrever «meu Sócrates», para que não se confundisse... que tristez, não é?
Beijinhos!
:)***

Querido Miguel,
Não viste o programa, mas até parece que sim! É como dizes: o populismo parece que entusiasmou a senhora...
Beijinhos!
:)****

Caríssimo Rui,
O que viu e o que eu vi deviam ser do mesmo género. Eu vi quando falaram com o o advogado. Num país democrático não é assim que se tratam os assuntos, muito menos na televisão pública!
Disgusting, diriam os ingleses.
:)

Anónimo disse...

Só espreitei o programa. Não gosto e irrita-me sempre a Fátima Campos Ferreira.
Isenção, é um rxercício que há muito não vejo nos nossos jornalistas (há sempre excepções).
O problema foi nenhum dos pais ter recorrido ao tribunal que deveria ter tratado destas coisas: tribunal de menores.
Duas sentenças em dois lados, diferentes para a mesma criança.
É de doidos.
Quanto ao Sócrates...penso como ele. Para ser sincera, gostaria de ter a certeza que actuaria como ele. Não a tenho.

Manuel disse...

Olá.

Este teu excelente texto tocou-me num aspecto que desenvolvi no breve tempus.
Quanto à criança e a toda esta especulação que gira à volta deste caso, lamento e muito pela influência negativa que terá no seu futuro. Não me parece que os "olhos vesgos da sociedade", a comunicação social, façam bem em se concentrar neste caso complexo, insólito e muito sensível.

Quanto ao que afirmas sobre Sócrates. Fico à espera do teu ilustre comentário querida Xântipa.

Nuno Adão disse...

Cara Xantipa, duvido, que o seu amado esposo, gostasse da democracia. Tanto o seu discípulo Platão como o discípulo deste, Aristóteles, eram contrários a este sistema inviável.
O Sócrates só é Sócrates porque decidiu, e muito bem, beber a taça de cicuta, por acreditar na justiça, não na humana, mas na divina, tornando-se assim, imortalizado pela escolha que fez!

Em suma, a cicuta é a imortalidade de Sócrates. De outra forma nunca conheceriamos Sócrates: é ou não é!

Cumprimentos de céu

frosado disse...

Concordo com quase tudo o que dizes Xantipa, também gosto m uito deste Sócrates, mas não sei se ele, como dizes "acreditava na democracia", pois se ele dizia, através de Platão, claro, que ela, democracia, trazia no ventre a tirania?