14 janeiro 2007

Um caso de amor gramatical

Não tenho aqui comigo um livro que li há muitos, muitos anos: Gaspar, Belchior e Baltazar, de Michel Tournier. Lembro-me de haver uma parte em que ele dizia que o Menino Jesus se tornara negro para melhor amar o rei negro.
Isto veio a propósito de uma regra latina de que gosto muito, e que confunde os alunos. Costumo explicá-la como um caso de amor gramatical.
Falo de uma mudança de categoria gramatical que se dá do gerúndio para o gerundivo.
O gerúndio é uma forma nominal de um verbo que serve para substituir o infinitivo nos casos que este não tem.
Podendo o infinitivo ser substantivado, quando é um nome, é um nome neutro. Nessas circunstâncias poderá assumir os casos nominativo, vocativo e acusativo (sem preposição). Assim sendo, o gerúndio pode estar nos casos acusativo (com preposição), genitivo, dativo e ablativo.
Perante uma frase como esta (e uso o exemplo que está na gramática):
«desejoso de ver a cidade»
esperaríamos:
cupidus (desejoso) uidendi (de ver) urbem (a cidade)
sendo uidendi o gerúndio (no caso genitivo)
e urbem o seu complemento directo (no caso acusativo).
Ora o que temos é:
cupidus uidendae urbis
Que aconteceu?
Uma bela relação de amor entre o gerúndio e o seu complemento directo.
O complemento directo mudou para se poder colocar no caso do gerúndio. Aqui, passou de acusativo para genitivo.
Como o gerúndio é um nome, só pode concordar em caso. Ora o seu complemento directo já se tinha disponibilizado para concordar em caso...
Que faz ele então, para também mudar alguma coisa, para mostrar o seu amor?
Muda de categoria gramatical!
De gerúndio (nome) passa a gerundivo (adjectivo) e assim pode concordar com o seu amado também em género e número (o caso já era o mesmo!).
Assim, em cupidus uidendade urbis, temos «urbis» em genitivo, a concordar com o pressuposto «uidendi» (masculino), e «uidendae», forma feminina, a concordar com o género de urbs, urbis.
Linda história de amor gramatical!
Sei que alguns leitores não vão perceber tudo, que se venham queixar, mas diponham, que eu explico.

4 comentários:

Anónimo disse...

Do que eu gosto é desse olhar amoroso que deitas sobre os "casos" gramaticais. Percebi tudo, mais uma vez.

Xantipa disse...

Teresinha,
Obrigada pelo elogio!
Beijinhos!
*****

Anónimo disse...

Também percebi, mas também tive latim.
Adorei o caso amoroso do gerundio pelo o acusativo
e as provas amorosas que dão transformando-se em gerundivo e em genitivo, respectivamente.
Se os humanos se tratassem assim...o mundo seria uma maravilha.

Xantipa disse...

Obrigada, Marta!
Beijinhos!