15 setembro 2007

Ainda (e finalmente) sobre a Lisístrata

(nós, os que fomos ao teatro)


Iniciei este postal há uns tempos... um mês... mas, como prometi e já me foi pedido, aqui vão algumas reflexões sobre a Lisístrata que vi em Mérida.
A peça que fomos ver era de Manuel Martínez Mediero (autor de Férias Grandes com Salazar, que esteve recentemente em cartaz no D. MariaII) e não de Aristófanes, em versão de daquele autor espanhol, como eu pensava. Mas o erro foi completamente meu, que não me documentei antes de ir (glup!).
Mas, a verdade é que gostei. Gosto, normalmente, destes usos contemporâneos dos temas clássicos. Já Aristóteles dizia, na Poética (apesar de ser sobre a tragédia, aplica-se à comédia):

Pelo exposto se torna óbvio que a função do poeta não é contar o que aconteceu mas aquilo que poderia acontecer, o que é possível, de acordo com o princípio da verosimilhança e da necessidade.
(1451a37)
não é de todo necessário cingirem-se a histórias (mitos, traduz o Eudoro de Sousa) tradicionais sobre que versam, geralmente as tragédias. Preocuparem-se com isso seria ridículo, pois mesmo as histórias conhecidas são conhecidas por poucas pessoas (já na altura...) e, no entanto, agradam igualmente a todos. De tudo isto resulta evidente que o poeta deve ser um construtor de enredos mais do que de versos, uma vez que é poeta devido à imitação e imita acções. (1451b27)

A cena passa-se em Esparta e não em Atenas. A heroína é rainha desta cidade e é ela quem encabeça a luta pelos direitos das mulheres, que pretendem a igualdade entre sexos e não uma superioridade em relação aos homens. No final é estrangulada pelo marido. Bem diferente da versão de Aristófanes.

A discussão entre ultrapassou este aspecto: encenação. Numa das muitas conversas que tivemos (nós, os que fomos ao teatro), havia quem defendesse que a peça não se devia chamar apenas Lisístrata. Que devia ser outra coisa... ter um subtítulo, por exemplo. Ora, sendo dois dos companheiros de viagem actores/encenadores/ professores, foi difícil argumentar com as suas críticas (a da Ana O. pode ser lida aqui).A mim não me incomoda que seja só assim. A Antígona, de Jean Anouille, não tem subtítulo. Nem a Fedra, de Racine. Aliás, acho que o nome é importante e aquilo que o que for escolhido invoca é que que faz a diferença. Aristófanes deixou um legado com esta comédia: de uma qualquer Lisístrata, ateniense ou espartana, espera-se liderança, luta femininae, principalmente, greve de sexo (curiosamente, esta notícia publicada aqui faz hoje um ano) .E é isso que Martínez Mediero nos dá nesta peça.
Quanto à encenação, disse-se que houve pouco aproveitamento do espaço, que o encenar não tirou partido dos recursos que as ruínas do teatro romano lhe davam. Nesse ponto concordo.
Quanto às brejeirices aqui e acolá, aos trajeitos efeminados de determinada personagem, à forma desajeitada com que alguns do muitos (muitos!) figurantes se moviam em cena, confesso que me divertiram. Nas comédias de Aristófanes havia tudo isto! E, tal como não percebi imediatamente por que riam as pessoas de umas coisas ou aplaudiam com entusiasmo outras, tendo vindo a saber que as personagens principais eram interpretadas por actores conhecidos do grande público, por causa da televisão, também imagino que quem assistisse a Os Cavaleiros e não conhecesse a obra de ou não soubesse que se gozava com Eurípides por se dizer que a mãe era hortaliceira, não ia perceber a referência ao cerefólio:
2º escravo: 'Fuarça'?!... Isso não é para mim. Ora... como é que eu hei-de dizer a coisa de uma maneira habilidosa, à Eurípides? Porque não me dizes tu aquilo que eu tenho de dizer? (frase do Hipólito, de Eurípides)
1º escravo: Ah, não! Cerefólios para cima de mim, não!
Aliás, nem iria perceber a piada do nome dos escravos, Cléon, Demóstenes e Nícias, que remetem para políticos bem conhecidos de todos.
Dizem os entendidos que o festival de Mérida já não é o que era. E eu acredito. Mas como nunca lá tinha ido, diverti-me imenso*! É sempre uma emoção estar sentada em locais como aquele... emocionei-me tanto no Epidauro... e não assisti a nenhuma peça. Acho que iria adorar, mesmo que fosse em grego moderno, com péssimos actores!
Voltamos para o ano?
*Pronto. Admito. Deu-me o sono e dormi um bocadinho... mas o texto era em espanhol coloquial... e já me tinha passado a emoção de estar naquele espaço... e quem me conhece sabe que tenho dificuldades em me manter acordada depois de uma certa (que nunca sei qual é) hora...

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