11 junho 2007

Ir à terra... «indícios da minha velhice»

Esta era a expressão que usávamos, lá em casa, quando íamos a Talhadas, a terra do meu pai, ali para os lados de Sever do Vouga.
Como a minha mãe é de Lisboa, não dava muito jeito falar assim, até porque se via ( e vê) pouca terra por lá (mesmo indo de comboio, já este anunciava: pouca-terra, pouco-chão, pouca-terra, pouco-chão).
Fui à terra estes dias e lembrei-me de Séneca (que coisa! Sempre Séneca!):

Para onde quer que me vire, vejo indícios da minha velhice. Tinha ido à minha quinta nos arredores e queixava-me das despesas a fazer com uma casa em ruínas. O feitor diz-me que o mal não está em falta de cuidados seus, simplesmente a casa é velha.
Ora esta casa cresceu entre as minhas mãos: como não estarei eu, se tão podres estão estas pedras da minha idade? Irritado, a proveito a primeira ocasião para me zangar com o homem. «Parece» - digo-lhe eu - «que estes plátanos não estão cuidados. Não têm folhas nenhumas! Olha como os ramos estão nodosos e ressequidos, como os troncos estão macilentos e sujos! Isso não aconteceria se as árvores fossem escavadas e regadas!».
O homem jura pelo meu Génio que faz tudo o que é preciso, que toma todos os cuidados necessários: elas é que já são velhotas! Aqui entre nós, fora eu que as plantara, eu que vira brotar as suas primeiras folhas.

Virei-me para a porta. «Quem é este?» - perguntei. «Este velho decrépito que, com toda a razão, puseram junto da porta? Onde foste desencantar este indivíduo? Que ideia foi essa de ir buscar um morto que não é nosso?»
Diz-me o velho: «Então não me conheces? Eu sou Felicião, a quem tu costumavas oferecer bonecos, sou o filho do teu feitor Filosito, o teu companheiro preferido».
«Belo» - digo eu - «este está doido; catraio, e ainda por cima armado em meu companheiro preferido! Até está correcto: já lhe estão caindo todos os dentes!...»
Fico em dívida com a minha quinta: para onde quer que me virava fazia-me dar conta da minha velhice.
Pois abracemo-la, apreciemo-la: se a soubermos usar, a velhice é uma fonte de prazer.

(a continuar)


Séneca, Cartas a Lucílio, 12, 1-4. Tradução de J.A. Segurado Campos, em edição da Fundação Calouste Gulbenkian.

6 comentários:

Anónimo disse...

Acho uma delícia este texto e tão verdadeiro.
Só damos conta de como estamos, quando pensamos "como fulana/o está envelhecido".
Acrescento sempre rapidamente, "como não estarei eu"


beijinhos

António Conceição disse...

Olha! Somos vizinhos!
Para mim, ir à terra é ainda ir a Barrô, no concelho de Águeda.
As Talhadas eram o lugar remoto de onde os meus bisavós tinham partido para mais perto do mar. Era a serra, a terra imaginária, o lugar do fogo e dos incêndios, o ponto ignoto para lá da fábrica dos fios "Arrancada", onde, na minha infância, acabava o mundo.

Xantipa disse...

:)
Passei muitas férias em Talhadas!
Tenho família lá, em Águeda e Aveiro.
Se os teus bisavós eram Dias Nogueira, então devemos ser mesmo família! Eh! Eh!
Mas agora, «ir à terra» tem dois sentidos, depende do lugar onde estou quando a pronuncio: se estou aqui, onde vivo (Faro),é ir ao Bombarral, onde nasci e vive a minha mãe; se estou no Bombarral, «a terra» é Talhadas, usando nós expressões como «escrever para a terra», «ir à terra», etc.
:)

Unknown disse...

Boa moral!
Rais partam a velhice! LOLLL
Ai os bicos de papagaio, ai, ai...

Bonito texto, como sempre.
Beijinhos
Miguel

João Moutinho disse...

Todos vamos crescendo (mesmo em alma) aos pocos e poucos.
Já Catão (antes de Séneca) era o "Velho" - bem, era um deles.
E os papagaios que nos vão surgindo. Nas costas, e depois nós é que cantamos.

Anónimo disse...

Eu sempre tenho dito que a velhice bem apreciada é uma fonte de prazer!
lindo, beijinhos