20 setembro 2008

tia babada

Ela diz que não tem um blogue, mas que, provavelmente, deveria tê-lo.
Também acho.
Adoro-a e sou, provavelmente, imparcial. Penso que escreve cada vez melhor e ninguém diria que é uma mulher das linguísticas (sem ofensa, pois parte de mim aí se inclui). Na verdade, o seu coração mora na literatura.
Adoro a minha sobrinha Rita.
Roubadíssimo do blogue do seu amigo Lourenço, que aloja os seus escritos, deixo-vos um texto delicioso. Se quiserem ler mais, visitem O Nascer do Sol ou sigam a hiperligação marcada na etiqueta Rita Faria, no fim deste postal.

As saudades que eu já tinha da minha alegre casinha, tão limpinha quanto eu… - por Rita Faria

Tenho uma amiga que diz que não gosta de casas farfalhudas. Com isto, ela quer dizer casas que estão a rebentar de coisas, a começar com o lugar-comum da Última Ceia na parede, passando talvez pelos espelhos com desenhos das quatro estações a imitar Arte Nova, a fruta de plástico inútil na mesa da cozinha, rendas e naperons e tapetes e tapetinhos a puxar ao persa ou ao turco por todo o lado, quadros de hotel a cobrir metros de parede e acabando, eventualmente, com bibelots exibidos com certo orgulho no móvel matacão das louças, com portinhas de vidro, e que tem um nome do qual não me lembro.
O que me surpreende nestas casas farfalhudas é que está sempre tudo impecavelmente limpo. Esta higiene irrepreensível contribui, na minha opinião, para tornar a casa ainda mais feia. Não é que eu goste de casa sujas, sendo que até sinto repulsa pela sujidade, como à partida qualquer ser humano, mas há algo que não me suscita o respeito que deveria suscitar na perfeição da limpeza de uma casa farfalhuda. Ver o lavatório da cozinha a reluzir de Cif, sem qualquer vestígio de utilização, ou os bibelots simetricamente dispostos sem grama de pó, ou o chão de taco a brilhar de encerado, ou a mesa da sala sem sinal de revistas desarrumadas, com um cinzeiro estrategicamente colocado e estrategicamente limpo, ou as garrafas do bar dispostas por tamanhos e em filinha no pequeno balcão a reluzir, tudo isto, não sei, faz-me impressão, acho foleiro, acho que ficava tudo muito melhor com uma camadinha de pó, com uns quantos pratos empilhados no lava-louça, com cinza no cinzeiro, com bibelots partidos e ainda bem porque assim vão para o lixo, com um jornal enxovalhado no sofá, etc.
Até ler o Lobo das Estepes, eu não percebia bem porque é que não gostava da limpeza irritante das casas farfalhudas, quando semelhante limpeza deveria ser um objectivo a atingir e não um defeito. No entanto, no livro que referi, há uma parte em que o Lobo está sentado nas escadas do prédio onde vive, à porta da casa (ou do quarto, não me lembro bem) de uma viúva. Está com um ar satisfeito, e o narrador, que o encontra, não percebe bem a razão de se estar ali sem fazer nada, de modo que é isso que pergunta ao Lobo. Este responde que está ali a apreciar a beleza da limpeza pequeno-burguesa. A viúva que vivia naquela casa cuidava da mesma até mais não poder, limpava tudo todos os dias, enchia o pequeno lance de escadas de higiene e terebentina (e talvez até de umas quantas plantas, mas já não me lembro se este pormenor estava no livro ou se sou eu a inventar, porque encher os lances de escadas de plantas também é farfalhudo) e o Lobo (e eu, acrescento) gostava disso, dessa pertença a alguma coisa, do conforto da higiene burguesa, dessa limpeza pequenina que vem com o desejo de uma vidinha certinha, de uma casinha, de uma tranquilidadezinha que ele não tinha, e que também não era bem o que ele queria, mas se calhar até era (ou, talvez, o que ele queria era conseguir querer a tal limpeza pequeno-burguesa, se é que isto faz sentido).
A limpeza pequeno-burguesa foi uma ideia que me ficou, indelével, depois de ler o Lobo das Estepes. É apenas um pormenor, no livro e nas nossas vidas, mas tão verdadeiro e tão reconhecível que nunca o esqueci, talvez porque já observei esta higiene burguesa, pequenina e confortavelzinha, tantas vezes, em tantas casas.
Não quero com isto dizer que a minha casa seja suja. Pelo contrário, eu até limpo a minha casa com toda a razoabilidade. Não sei é se o cheiro da terebentina farfalhuda lá está. Espero que não, mas, se estiver, também não é assim tão mau.

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posted by LB at Quarta-feira, Setembro 10, 2008 links to this post

3 comentários:

Joaquim Moedas Duarte disse...

Ói, querida Amiga! Cá "me" estou eu de novo!

Não tenho tido tempo - e paciência - para me sentar ao computador. Mas tinha saudades de aqui vir.
E que encontro eu? Um belo texto sobre casas farfalhudas que me deliciou. Obrigado, Xantipa. Vou procurar as tais ligações...

Ah! Mas não esqueço os teus pedaços de classicismo! Sempre estimulantes!

Desejo que as aulas comecem bem, que encontres turmas que te mereçam!

Um abraço

Anónimo disse...

adorei este excerto. Fez-me lembrar a casa dos meus pais.LOL
A minha é um pouco mais livre desse bricabraque...;) Mas tb gosto das coisas mt limpinhas...defeito de família (ou não).
Bjs
Ana Paula

Anónimo disse...

Não é só a casa dos teus pais que é assim, Ana Paula, a dos meus só não é pior, porque eu já deitei metade das coisas fora.

Cara Xantipa,
tem boas razões para ser uma tia babada. A escrever desta maneira, a sobrinha só pode ser motivo de orgulho.

Um abraço