31 dezembro 2007

Último postal do ano - a qualidade da alma

Hoje é o dia (a noite, aliás) de fazermos uns desejos ao comer doze passas ao som das badaladas da meia-noite. Eu cá alinho em tudo: como passas, faço desejos, visto não-sei-o-quê azul, dobro uma perna, levanto um cotovelo, dou três pancadinhas na ponta do nariz do vizinho do lado, enfim, todas as maluqueiras que quiserem.
O importante é estar bem com quem se está. E se passasse sozinha também ia estar bem!
Fui passar um pouco da tarde com o meu Séneca e aqui vai mais um bocadinho de uma carta e os meus votos de um excelente 2008 para todos!

Deixemos de desejar aquilo que já algum dia quisemos. Eu, por minha parte, faço o possível por não ter em velho os desejos que tinha em garoto. Os meus dias e as minhas noites, os meus esforços e pensamentos têm como objectivo pôr termo aos meus antigos defeitos. Procedo de modo a que cada dia seja o equivalente de uma vida inteira; mas, Hércules me valha!, não me apresso a gozá-lo como se fosse o último, apenas o encaro como se pudesse ser de facto o meu último dia! (...) Estou preparado para partir, e assim gozo tanto mais a vida quanto menos me preocupa saber quanto tempo o futuro ainda me reserva.
(...)
Para que a vida seja suficiente, o que conta não são os anos nem os dias, mas a qualidade da alma.

Séneca, Cartas a Lucílio, 61 (sempre a mesma edição).

28 dezembro 2007

Quero... não quero...

A Gi desafiou-me a que dissesse uma coisa que eu quisesse receber este Natal e três que não quisesse. Como acho mal esta desigualdade, vou dizer três de cada:

Queria receber:

- a minha casa prontinha a habitar;
- muitos mimos;
- um computador que nunca desse problemas, que não necessitasse de actualizar nada e que se ligasse automaticamente à internet, da mais veloz que houvesse.

Não queria receber:

- CD's do Zé Cabra, da Ágata, do Emanuel, da Ffllorlibbella (nunca sei que consoantes é que o nome dela dobra) ...
- falsos amigos (já me bastam os linguísticos!)
- um mau livro!
E, leitura sugerida pela Calpúrnia, deixo aqui uma queixa de Catulo, a quem estragaram as Saturnais, época que corresponde a estas nossas das festas de Dezembro, precisamente por causa disso:

Ó grandes deuses, que livreco horroroso e execrável,
que tu próprio, evidentemente,
enviaste ao teu amigo Catulo,
nas Saturnais, no melhor dia,
para que ele morresse logo nesse dia.


Catulo, Carmina XIV, vv. 12-14

26 dezembro 2007

Muitos prodígios há; porém nenhum maior do que o homem

O caríssimo Broto ofereceu-me um dia uma prenda linda.
O que aqui lhe deixo não se lhe compara, mas é com boa vontade. Uma proposta, em Português, para o seu último postal.

Muitos prodígios há; porém nenhum maior do que o homem (1).
Este, com o tempestuoso vento do Sul, avança para lá do mar cinzento
e ultrapassa as grossas vagas que rugem à sua volta.
E cansa a infatigável Terra imortal,
a mais poderosa das divindades,
revolvendo-a com a raça dos cavalos,
de um lado para o outro com as charruas, ano após ano.
O homem muito hábil, enlaça a tribo de aves de voo ligeiro,
e leva, em redes bem tecidas a raça de animais selvagens e marinhos;
domina, com invenções engenhosas,
os animais dos campos que andam no mato;
e o cavalo de longas crinas é levado pelo jugo que lhe envolve o pescoço,
tal como o indomável touro montanhês.
Aprendeu a linguagem e o pensamento ágil,
os costumes civilizados,
e, pleno de expedientes,
aprendeu a fugir do gelo
e dos ataques da chuva importuna nos lugares descobertos
e que tornam difícil a permanência ao ar livre.
Não avança no futuro sem recursos.
Apenas ao Hades não poderá fugir;
no entanto, meditou com outros o modo de escapar
a doenças para as quais não havia recurso.
O saber engenhoso da sua habilidade inesperada pende
umas vezes para o mal, outras para o bem;
ocupa um lugar cimeiro na cidade,
confundindo as leis da terra e a justiça dos deuses,
confirmada por um juramento;
é indigno de viver na cidade se o mal se associa a ele,
devido à sua audácia.
Que não se sente no meu lar quem assim for nem seja meu amigo o que pratica tais acções!

Sófocles, Antígona, vv. 332-375

(1) A tradução deste passo é minha, se bem que a versão para Português do primeiro verso pertença a Maria Helena da Rocha Pereira, na sua edição da FCG.

25 dezembro 2007

...paulo maiora canamus.


E, precisamente durante o teu consulado, Polião, chegará
a glória de uma época, e os grandes meses começarão a avançar;
Sob a tua direcção, se permanecem alguns vestígios dos nossos crimes,
anulados, libertarão as terras do terror perpétuo.
Essa criança terá a vida dos deuses e verá
os heróis misturados com as divindades e ele próprio será visto por elas
e irá governar um mundo pacificado com as virtudes do seu pai.


Vergílio, Bucólica IV, vv. 11-15

24 dezembro 2007

Sicelides Musae...

Ó musas da Sicília, cantemos algo mais elevado.
Os arvoredos e as pequenas tamargueiras não agradam a todos;
Se cantamos as florestas, que as florestas sejam dignas de um cônsul.Já está a chegar a última era da profecia de Cumas;
a grande ordem dos séculos nasce, de novo.
Já está a regressar a Virgem, regressam os reinos de Saturno,
já uma nova descendência é enviada do alto céu.
Tu, casta Lucina, favorece a criança que está quase a nascer,
Pela qual, primeiro, terminará a geração de ferro,
e surgirá em todo o mundo a era de ouro; o teu Apolo já reina.


Vergílio, Bucólica IV, vv. 1-10

Boas Festas!

Como tenho tido dificuldade em me ligar à internet e aceder ao blogger, antes que «isto» desligue, aqui ficam os meus votos de Boas Festas.
Se «isto» se portar bem hoje, ainda publico um postalinho mais logo.
Feliz Natal!

20 dezembro 2007

multa de respeito


Comprei o Borda d'Água para 2008. Os textos da editora são indescritíveis.
Contudo, tem, no texto inicial, uma referência digna de nota:

Os anos bissextos foram cercados de mitos e tradições. No séc. XIII, na Escócia, em cada ano bissexto, eram as mulheres, e não como de costume os homens, que tinham o direito de escolher quem desejassem para marido; se o escolhido não estivesse de acordo com o casamento, era obrigado a pagar uma multa de respeito.

E mais nada!

19 dezembro 2007

Abaixo a censura!

Agradeço aos meus amigos que se queixaram que os seus comentários não eram publicados e acreditaram que eu não tinha nada a ver com isso.
Aos que não me conhecem, apesar da moderação, este blogue até hoje só não publicou comentários a pedido dos próprios, porque eram particulares, e dois considerados «agressivos».
Portanto, quem tiver tido ou venha a ter dificuldades em comentar, mande-me um mail.
Contudo, penso que o problema estará resolvido.
Obrigada!

16 dezembro 2007

Diana e Minerva

Caio Plínio saúda o seu amigo Cornélio Tácito

1. Vais rir, e é justo que rias. Eu, aquele que conheces, apanhei três javalis e bem bons. «Tu próprio?» - perguntas. Eu próprio; e nem sequer me afastei inteiramente da minha inércia e quietude. Estava sentado ao pé das redes; tinha, junto a mim, não uma lança ou um dardo, mas um estilete e tabuinhas para escrever; meditava em qualquer coisa e tomava notas, para que, se voltasse de mãos vazias, pelo menos levava as tábuas cheias. 2. Não desprezes este modo de trabalhar; é de admirar como o espírito é estimulado pela agitação e movimento do corpo; já a solidão que envolve a floresta e aquele silêncio que é proporcionado pela caça são grandes estímulos do pensamento. 3. Por conseguinte, quando caçares, podes fazer como eu e leva o teu cesto de pão e uma garrafinha com bebida, bem como as tabuinhas para tirares apontamentos: vais dar-te conta de que Diana não vagueia mais pelos montes que Minerva.
Adeus.

12 dezembro 2007

De libera voluntate

Portanto, se entre os bens do corpo encontramos alguns de que o ser humano pode não usar com rectidão, nem por isso dizemos que eles não lhe deviam ter sido dados, pois reconhecemos que são bens (...).
De facto, quando um corpo não tem mãos, vês que lhe falta um bem importante. Contudo, faz um mau uso das mãos quem as emprega em acções violentas ou vergonhosas. (...)
Portanto, assim como aprovas estas coisas em realção ao corpo e, sem reparar naqueles que fazem mau uso delas, louvas Aquele que deu estes bens, também confessarás que a livre vontade, sem a qual ninguém pode viver com rectidão, é necessariamente um bem e um dom divino, e que mais se deve condenar aqueles que usam mal deste bem, do que afirmar que não no-lo deveria ter dado Aquele que no-lo deu.

Santo Agostinho, Diálogo Sobre o Livre Arbítrio, INCM, Lisboa, 2001. Tradução de Paula Oliveira e Silva.

07 dezembro 2007

Kalevala - tradução do original

Um cheirinho da tradução, directamente do finlandês, por Merja Mattos-Parreira e Ana Isabel Soares, roubada com grande descaramento do blogue desta última.

(Ouvi dizer que saíu uma edição de Kavela traduzida de outras línguas que não a original. Obviamente que me recuso a ler uma tradução de uma tradução, havendo esta praticamente no prelo. E não entendo como a embaixada da Finlândia pôde estar presente nesse lançamento.)

Depois de dizer muitas vezes "Obrigado, senhor Lönnrot, obrigado!", o Reboliço desabafa: era um grande mal agradecido, esse Lönnrot, é o que era! Quantas vezes os heróis trabalham, labutam, lutam, laboram, conseguem os feitos, só para o romântico médico lhes rematar as falas com um "Louve-se Deus." Nestes versos, o herói maior, Väinämöinen, ferido com um machado no joelho, contorce-se com dores e recebe, finalmente, a ajuda de um velho deitado ao lume:

"O velho expulsou a dor,
o sofrimento empurrou
para o meio de Kipumäki,
para o pico de Kipuvuori,
para dar a dor às pedras,
entregar à rocha a dor."
(Canto IX, vv. 523-528)

Pois não querem lá ver a resposta do herói, depois de o sangue estancar?

"Bendito sejas, ó Deus,
bendito, Criador único,
que a mim tanto ajudaste,
me trouxeste protecção
a mim nestas grandes dores,
do férreo aço a ferir!”
(Canto IX, vv. 571-576)

Assim, não dá!...

(Elias Lönnrot foi o médico que, entre 1833 e 1853, viajou pela Carélia e reuniu cantos, rezas e lengalengas populares, que haveria de publicar como cancioneiros e como a epopeia Kalevala. Nesta, compôs uma história a partir de várias camadas de histórias, passadas oralmente, de geração em geração. Um dos debates literários mais prolixos ainda hoje na Finlândia prende-se com saber em que medida o compilador foi ou não autor dos versos, isto é, terá interferido na construção das narrativas, nomeadamente no que a atitudes religiosas diz respeito. Um dado é certo: há muitos momentos de incongruências narrativas, e os versos acima dão conta de uma apenas.)

05 dezembro 2007

ΜΕΤΑΦΟΡAΣ... ΜΕΤΑΦΟΡΕΣ


A primeira vez que vi um destes camiões de transportes (nesta imagem está um de transportes e mudanças - 'μεταφορές' e 'μετακομισεις') surpeendi-me.
Estava eu sentada numa esplanada, há muitos anos, quando vejo passar um grande camião, pintado com letras garrafais, a dizer «METΑFORAS». Não compreendi de imediato. Acontece, com as metáforas...
Depois fez-se luz.
Que faz uma metáfora? Leva-nos para outra esfera de imagens, de modo a podermos apreender um mesmo sentido. Digo o mesmo, mas transportando as palavras para outro lado.
Fosse eu poetisa e escreveria qualquer coisa sobre as metáforas com que nos podemos cruzar na cidade de Atenas.
Mas não sou. Nem sequer boa fotógrafa. Esta foto foi tirada à noite, com os gregos que me rodeavam a gozar comigo por este meu fascinío por camiões de mudanças...

04 dezembro 2007

Paciente, passos, paixão...

Ontem, numa reportagem do telejornal da TVI sobre o uso de palavras inglesas na nossa língua, a jornalista alargou o tema aos anglicismos. Foi nesse contexto que entrevistaram uma emérita professora da Universiadade Nova de Lisboa, com a qual tenho de discordar (coisa que detesto fazer). Mas... paciência.

A propósito de «paciente», com o sentido de «doente» (afirmando que os médicos não têm pacientes, mas doentes), disse a professora que esta palavra vinha do inglês «pacient» e que seria de evitar.
Não é verdade. Isto é, é de evitar estar doente, claro, mas não há razão para evitar o uso do vocábulo.

Como adjectivo, paciente significa «o que sabe esperar», único sentido que lhe foi atribuído naquela reportagem. Como substantivo, significa, além de «indivíduo que espera calmamente» (v. Houaiss), «aquele que está doente».

Paciente vem directamente do particípio presente do verbo depoente latino patior (que significa «sofrer»): aquele que sofre.
É seu cognato o nome paixão (passio, passionis - a paixão de Cristo, por exemplo, é a expressão do seu sofrimento) ou passos, na expressão Senhor dos Passos. Não se chama assim à imagem de Cristo que passeia ou que dá passos (pois assim seria do nome latino passus, passus), mas sim ao Cristo que sofre, dado que passus, passa, passum é o particípio passado do mesmo verbo patior.

Infelizmente, na maior parte das vezes, temos de ser pacientes quando somos pacientes de alguns médicos...

Petição

O meu sobrinho Nuno, de 18 anos, fez esta petição.
Se estiverem de acordo, assinem.
http://www.petitiononline.com/acor1990/petition.html