03 outubro 2006

De uma carta com 2000 anos...

Há 6 anos que o meu mundo anda a dar voltas.
«Sou nova de mais para ter tantos amigos a desaparecerem», lamentava-me.
Neste 6 anos foram muitos, demasiados, aqueles que eu amava e partiram... pai, irmão, sogros, amigas, amigos...
Fui buscar ao computador uma carta a que tenho, infelizmente, tido necessidade de recorrer com demasiada frequência. Foi a primeira (Dezembro de 2000) de muitas que enviei com o texto de Séneca.
Como explica o contexto e alguns comentários, reproduzo-a. A Teresa não se vai importar, eu sei.

«Cheguei a casa e os meus olhos pousaram em Séneca, nas minhas (dele) eternas Cartas a Lucílio. Fui abrindo ao acaso e tudo fazia sentido. Ora me imaginava Séneca , ora me imaginava Lucílio. E é assim que te envio alguns bocadinhos dos pensamentos com os quais me deitei. Claro que estamos perante um mundo de homens, onde os sentimentos femininos nem sequer são tidos em consideração, muito menos a sua dor... no entanto, parecia que era para mim que Séneca estava a escrever. Incluo os meus pensamentos que foram atravessando a leitura...

Lamento profundamente o falecimento do teu amigo Flaco, no entanto a tua dor não deve ultrapassar os limites do razoável. Não ousaria exigir de ti que não sentisses o mínimo abalo perante o facto, embora isso fosse o ideal.

(aqui irritei-me, saltei parágrafos, mas ele continuou, imaginando uma pergunta por parte de Lucílio:)

«Como dizes? Então eu hei-de esquecer o meu amigo?!»

(voltei a saltar... não gostei da frase que vinha a seguir... e fui para a página seguinte:)

Age com equidade, caro Lucílio, e não interpretes mal os benefícios que a fortuna te concedeu: ela roubou-te um amigo, mas fora ela quem to tinha dado. Gozemos intensamente a companhia dos nossos amigos, até porque não podemos saber por quanto tempo o faremos. Pensemos também quantas vezes os deixámos para partir em longas viagens, quantas vezes estivemos sem os ver embora morando na mesma terra: compreendemos deste modo que, mesmo estando eles vivos, não aproveitámos a sua companhia a maior parte do tempo.

(tem razão...voltei a saltar uma página e li umas linhas soltas)

O que vou dizer-te agora é uma verdade mais do que rebatida, mas nem por andar em todas as bocas eu deixarei de a repetir: quando deliberadamente não pomos nós um termo à nossa dor, o tempo o fará por nós.

(pode ser verdade, mas a frieza dele está a irritar-me. Salto uma página. Não sei porque continuo.)

Sou eu quem te escrevo estas palavras, eu, que tão imoderadamente chorei o meu grande amigo Aneu Sereno, eu, que com grande vergonha minha me vejo forçado a incluir-me no número daqueles que se deixaram vencer pela dor!

(vá lá... está a mostrar-se mais «humano». Continuo a leitura)

Hoje, no entanto, condeno a minha atitude passada, e compreendo que a principal causa do meu excessivo pranto foi o nunca me ter passado pela ideia que ele pudesse morrer antes de mim. Ocorria-me apenas que ele era mais novo, muito mais novo do que eu – como se o destino se preocupasse em respeitar a ordem de idades! Mais uma razão para continuamente meditarmos na nossa condição de mortais, nossa e daqueles a quem amamos. O que eu deveria ter feito era dizer: «Sereno é mais novo do que eu, mas isso que tem? Deverá morrer depois de mim, mas também pode morrer antes.» Não o fiz, e assim o súbito golpe da fortuna encontrou-me desprevenido! Neste momento medito em que tudo é mortal e que a mortalidade não obedece a qualquer lei; o que é possível, tanto é possível hoje como em outro dia qualquer. Pensemos, caro Lucílio, que em breve também nós iremos para onde foi agora, para tristeza nossa, esse nosso amigo; até pode suceder que tenham razão os sábios e haja um lugar onde todos iremos residir após a morte: se assim for, esse amigo que julgamos ter morrido, limitou-se a partir para lá à nossa frente!

Assim termina a 63ª carta de Séneca a Lucílio e é por isto que eu continuo a ler Séneca... passados cerca de 2000 anos...

6 comentários:

Anónimo disse...

Olá, Adriana! Cheguei ao teu blogue e gostei do que li. Em relação a este post e não obstante a dor que nos provoca a morte de amigos ou familiares, tenho uma teoria que não se afasta muito do texto de Séneca. Colecciono os momentos importantes que com el@s passo, como quem colecciona cromos ou postais, que gosto de rever ao longo dos anos. Compreendi cedo o prazer e o consolo que as avós retiram da contemplação das fotos antigas. Não é um remédio absoluto, mas também não creio que seja apenas um paliativo. É uma forma de estar na vida, é um sentido para o "Carpe Diem".
Beijinhos com amizade ( e saudades!)

Xantipa disse...

Obrigada, Sara!

Nuno Adão disse...

Cara xantipa, tenho um amigo que diz que cartas a Lucílio: é a biblia do estoicismo!
E é bem verdade - lá encontramos tudo aquilo que necessitamos para o dia-a-dia.

Excelente carta, cumprimentos

Xantipa disse...

Mais uma vez, obrigada pelas suas palavras, Thoth. Séneca é um grande companheiro, mas por vezes muito irritante!
:)

Anónimo disse...

... uma delicia!
Isto, realmente, é pensar! com emoção! e com culpa d'existir!
O seu blog é um local antigo e... fresco?!
Mais uma vez: Parabéns! Gosto de vir aqui!
... depois era mais uma imperial... se faz favor...

Xantipa disse...

Caro Pankraciu,
Não tenho um mail nem um blogue onde o possa visitar e agradecer as suas simpáticas palavras. Nem sei se vai voltar a este post para ler este meu agradecimento! Não o acompanho a beber cerveja, mas fico à mesa com um chá, se não se importa.
Ora saia lá uma imperial e um chá para esta mesa, se faz favor!