Esta motivação surgiu de conversas com amigos, firmando cada vez mais o meu gosto pelos antigos: quanto mais leio os clássicos, mais próximos os percebo da nossa realidade. No outro dia, numa discussão sobre reformas e leis que o Governo quer fazer aprovar – e vai conseguir, pois tem a maioria absoluta – lembrei que as leis são feitas pelos homens e que «cá se fazem, cá se… mudam».
E se as leis foram passadas a escrito, conscientemente elaboradas por homens, tempos houve em que a sua base era apenas divina. No entanto, aqueles que pensavam discutiam quer a autoridade das leis não escritas, quer a das escritas – quando estas não respeitavam a natureza humana.
Vou cingir-me a esta última disputa, a que opunha a lei (nomos) à natureza (physis), dada a impossibilidade de compatibilizar a evidente contradição de duas fontes de valor: por um lado a ordem cósmica (a natureza das coisas), por outro a vontade dos homens (sendo as leis o fruto da acção humana).
O sofista Antifonte afirma que «a maior parte das coisas que são justas segundo a lei entram em conflito com a natureza». Hipócrates, num contexto médico, também opõe estes termos: «Pois a lei é o contrário de natureza no que diz respeito a estas coisas». Crítias, membro do governo dos «Trinta Tiranos» de Atenas, defende que os deuses não passavam de uma criação dos homens:
Também Crítias, um dos tiranos de Atenas, parece que era do grupo dos ateus, dizendo que os antigos legisladores formaram um deus como um inspector das acções dos homens, boas e más, para que ninguém injuriasse o seu próximo secretamente mas que o honrasse com receio da vingança dos deuses.
E, mais adiante, acrescenta-se que o tragediógrafo Eurípides teria defendido estas ideias, pondo na boca de uma personagem que um homem sábio «inventou para os mortais o temor [pelos deuses], de maneira que os maus tivessem medo até do que fizessem, dissessem ou pensassem em segredo».
Esta subversiva visão das divindades e das leis morais, por um lado, reduz os deuses a uma mera ficção, por outro, desacredita completamente as intenções dos legisladores.
No Górgias, de Platão, aparece-nos o orador Cálicles, uma figura relevante no debate entre nomos e physis, cujas teses só não ganham maior proeminência pelo simples facto de não ser possível asseverar a sua historicidade:
Dir-te-ei francamente o que é belo e justo segundo a natureza: aquele que quiser viver bem deverá deixar crescer à vontade as suas paixões, sem as reprimir, e, por maiores que elas sejam, deverá ser capaz de as satisfazer graças à sua coragem e inteligência, dando-lhes tudo aquilo que elas desejarem.
Claro que isto não é acessível à maioria, que censura estes homens por vergonha, para ocultar a sua própria fraqueza. Por isso ela declara, como há pouco observei, que a intemperança é vergonhosa, com o objectivo de escravizar os mais bem dotados pela natureza, e como não pode dar às suas paixões satisfação completa louva por cobardia a temperança e a justiça.
[...] A verdade que tu dizes perseguir, Sócrates, é, na realidade, a seguinte: a vida de delícias, a intemperança e a liberdade sem freio, quando favorecidas, são a virtude e a felicidade. O resto são palavras bonitas e convenções sociais contrárias à natureza, que não passam de tagarelice estúpida sem qualquer espécie de valor.(491e-492c). (Tradução de Manuel de Oliveira Pulquério, Edições 70, Lisboa, 1992)
Esta tese tinha sido já apresentada no início da intervenção do orador no debate que opõe os três retóricos a Sócrates (482e-484c). São aí avançados dois pontos de vista importantes para qualquer abordagem da questão nomos/physis. O primeiro, a que me referirei adiante (se hoje não tiver tempo, amanhã continuo), seguindo uma referência de Aristóteles ao Górgias, é a de que nomos e physis eram dois conhecidos topoi nos debates sofísticos. O segunda é a que acabei de referir e que Cálicles reprova. No passo que reproduzo a seguir, com a sua enérgica condenação do nomos, Cálicles manifesta total solidariedade de pontos de vista com a defesa do ateísmo de Crítias:
Quanto às leis, estou convencido de que são feitas pelos fracos e pela grande massa, que agem exclusivamente no seu próprio interesse, fixando o que é digno de louvor e o que é digno de censura. Para assustarem os mais fortes, aqueles que têm possibilidade de se superiorizarem, e para não se deixarem ultrapassar por eles, dizem que toda a superioridade é vergonhosa e injusta e que a injustiça não é mais que querer estar acima dos outros. Como não têm valor, sentem-se felizes, creio eu, por colocar todos ao seu nível.
É por isso que a lei considera injusto e vergonhoso o desejo de ser superior à maioria, e é a isto que chamam injustiça. Mas a própria natureza, em minha opinião, demonstra que é justo que o melhor esteja acima do pior e o mais forte acima do mais fraco.
Id. Ibid., 483b-d
Caracterizar esta posição – tal como a de Crítias – como «imoralista», confinando-a ao domínio da ética, constitui apenas uma condenação. Parece-me mais interessante a tentativa de as encarar como um sintoma do clima dos debates sofísticos na Atenas do pós-Péricles, compreendendo claramente que a relevância destas posições é muito mais política do que ética (ou que a segunda decorre da primeira). No fundo, o que os dois oradores querem tornar claro é que se consideram acima das leis e dos valores que regem o comportamento dos outros homens, encarando como legítima qualquer tentativa de manifestarem a sua superioridade pela tomada do poder pela força. O facto é, de resto, confirmado pela história, no caso de Crítias.
Quanto às leis, estou convencido de que são feitas pelos fracos e pela grande massa, que agem exclusivamente no seu próprio interesse, fixando o que é digno de louvor e o que é digno de censura. Para assustarem os mais fortes, aqueles que têm possibilidade de se superiorizarem, e para não se deixarem ultrapassar por eles, dizem que toda a superioridade é vergonhosa e injusta e que a injustiça não é mais que querer estar acima dos outros. Como não têm valor, sentem-se felizes, creio eu, por colocar todos ao seu nível.
É por isso que a lei considera injusto e vergonhoso o desejo de ser superior à maioria, e é a isto que chamam injustiça. Mas a própria natureza, em minha opinião, demonstra que é justo que o melhor esteja acima do pior e o mais forte acima do mais fraco.
Id. Ibid., 483b-d
Caracterizar esta posição – tal como a de Crítias – como «imoralista», confinando-a ao domínio da ética, constitui apenas uma condenação. Parece-me mais interessante a tentativa de as encarar como um sintoma do clima dos debates sofísticos na Atenas do pós-Péricles, compreendendo claramente que a relevância destas posições é muito mais política do que ética (ou que a segunda decorre da primeira). No fundo, o que os dois oradores querem tornar claro é que se consideram acima das leis e dos valores que regem o comportamento dos outros homens, encarando como legítima qualquer tentativa de manifestarem a sua superioridade pela tomada do poder pela força. O facto é, de resto, confirmado pela história, no caso de Crítias.
Nota: as traduções não identificadas são da minha responsabilidade.
3 comentários:
“Um caçador esquimó pergunta ao missionário:
- Se eu nunca tivesse ouvido falar de Deus e do pecado, teria ido para o inferno?
- Não, porque nesse caso estarias na ignorância!
- Sendo assim, porque é que me falou disso?”
Extraído de La Vie Eskimo, XXX
Seria Cálicles hedonista?...
:)
Quanto à outra questão, levantada no Caderno de Corda, fico muito satisfeito por sabê-la connosco. Por "compromissos editoriais" já assumidos, não poderei fazer agora o tal acerto, mas a sua proposta faz todo o sentido. De qualquer modo, a prova mantém-se (vide texto com o título 'Site da RTP publica plágio descarado de texto do Caderno de Corda (III)'). Devo dizer que soube da "retirada" pelo seu pertinente comentário.
Muito obrigado.
Cumprimentos
V
O Cálicles/personagem de Platão decerto não desdenharia uma leitura (e, em grande parte, concordância!) do Para Além do Bem e do Mal do Nietzsche. Não lhe parece, Xantipa?...
Caro Carlos,
No campo da especulação (ao qual pertence a própria personagem!) é possível atribuirmos-lhe muitos entedimentos. Acho que sim, que leria com agrado que «nada mais é "dado" com real a não ser este mundo de desejos e paixões, que não podemos mergulhar ou levantar de uma outra "realidade" a não ser aquela dos nossos impulsos».
Nota: peço desculpa, mas esta tradução fi-la agora de uma edição inglesa que aqui tinha... A minha tradução em português est´´a num caixote à espera da mudança de casa e o meu alemão mão chega para ler Nietzsche... :(
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