21 outubro 2006

O aborto (2)

Ao discutirmos actualmente, a despenalização do aborto (confundindo, muitas vezes, a despenalização com a aprovação desta prática como meio contraceptivo), estamos a admitir a diferença entre a moral, as opiniões e a lei por que nos regemos. Estamos também a dar razão aos primeiros que filosofaram e a outros que lhes seguiram que defendiam que as leis mudam e têm origem no «acordo voluntário dos indivíduos, preparados para concessões recíprocas», como diz uma investigadora italiana, Decleva Caizzi.
Por exemplo, Crítias afirmava que os deuses foram inventados pelos homens e Cálicles, no Górgias de Platão, reforça a ideia: «Quanto às leis, estou convencido de que são feitas pelos fracos e pela grande massa, que agem exclusivamente no seu próprio interesse, fixando o que é digno de louvor e o que é digno de censura» (483b).
Teria a mulher autonomia para pôr e dispor do seu corpo? A liberdade que as mulheres revelam na literatura (independentemente da sua condição social ser ou não de escravas) com o seu corpo será uma manifestação da vivência da época ou será simplesmente poética? Até que ponto a liberdade de fazer greve aos deveres conjugais era possível, como faz Lisístrata?
Efectivamente, a condição que Calírroe nos apresenta seria mais frequente do que se possa imaginar. Na Grécia antiga, o aborto, a par do infanticídio (geralmente sob a forma de exposição, isto é, abandono à morte), acontecia como forma de controlo de natalidade e, tal como em Roma, não era considerado crime. Dado que até a criança ser aceite pelo pai não tinha existência jurídica, esbatiam-se assim as diferenças entre abortar e expor. Apesar de os médicos não o deverem praticar, não havia uma condenação ética absoluta do aborto. Platão mostra-se favorável a ele como modo de controlo demográfico e por razões económicas, e Aristóteles concorda que se pratique por razões génicas, estabelecendo mesmo uma data a partir da qual é censurável (Política, 1335b19-25. Veja-se a nota 170 à tradução de António Capelo do Amaral e Carlos de Carvalho Gomes, 1998, Lisboa, Vega).
No romance de Cáriton, referido no postal anterior, o aborto é referido com naturalidade como a solução imediata para uma gravidez não desejada (ou melhor, desejada, mas noutras circunstâncias), não querendo com isto dizer que seja visto como uma acção louvável. Calírroe hesita variadas vezes, pois, apesar de estar apenas grávida de dois meses, já sente o amor de mãe a pesar na decisão e não quer seguir «as pisadas de Medeia»...

1 comentário:

Orlando Braga disse...

Os gregos antigos eram totalmente tolerantes em relação à homossexualidade; no entanto, o casamento na Grécia sempre foi entre um homem e uma mulher, nunca isso foi posto em causa por «acordo voluntário dos indivíduos, preparados para concessões recíprocas».
Bom, temos aqui um problema…o que poderemos fazer então? Poderemos sempre aproveitar da Grécia Antiga o que nos interessa, “esquecendo” o que não nos interessa.

«Quanto às leis, estou convencido de que são feitas pelos fracos e pela grande massa, que agem exclusivamente no seu próprio interesse, fixando o que é digno de louvor e o que é digno de censura»

Se retiramos a autoria deste texto, poderia dizer que é de um libertário (de direita) do século XXI (se fosse de um libertário socialista, as “massas” nunca seriam os “fracos”). Platão (ou a personagem que utiliza) mostra-se tolerante com a flexibilização dos costumes e intolerante para com quem não concorda com ele. Ao fim e ao cabo, acaba por cair nas mesmas contradições humanas que critica, “propondo leis em nome de quem age exclusivamente no seu próprio interesse, fixando o que é digno de louvor e o que é digno de censura”.