Tenho uma amiga que diz que não gosta de casas farfalhudas. Com isto, ela quer dizer casas que estão a rebentar de coisas, a começar com o lugar-comum da Última Ceia na parede, passando talvez pelos espelhos com desenhos das quatro estações a imitar Arte Nova, a fruta de plástico inútil na mesa da cozinha, rendas e naperons e tapetes e tapetinhos a puxar ao persa ou ao turco por todo o lado, quadros de hotel a cobrir metros de parede e acabando, eventualmente, com bibelots exibidos com certo orgulho no móvel matacão das louças, com portinhas de vidro, e que tem um nome do qual não me lembro.
O que me surpreende nestas casas farfalhudas é que está sempre tudo impecavelmente limpo. Esta higiene irrepreensível contribui, na minha opinião, para tornar a casa ainda mais feia. Não é que eu goste de casa sujas, sendo que até sinto repulsa pela sujidade, como à partida qualquer ser humano, mas há algo que não me suscita o respeito que deveria suscitar na perfeição da limpeza de uma casa farfalhuda. Ver o lavatório da cozinha a reluzir de Cif, sem qualquer vestígio de utilização, ou os bibelots simetricamente dispostos sem grama de pó, ou o chão de taco a brilhar de encerado, ou a mesa da sala sem sinal de revistas desarrumadas, com um cinzeiro estrategicamente colocado e estrategicamente limpo, ou as garrafas do bar dispostas por tamanhos e em filinha no pequeno balcão a reluzir, tudo isto, não sei, faz-me impressão, acho foleiro, acho que ficava tudo muito melhor com uma camadinha de pó, com uns quantos pratos empilhados no lava-louça, com cinza no cinzeiro, com bibelots partidos e ainda bem porque assim vão para o lixo, com um jornal enxovalhado no sofá, etc.
Até ler o Lobo das Estepes, eu não percebia bem porque é que não gostava da limpeza irritante das casas farfalhudas, quando semelhante limpeza deveria ser um objectivo a atingir e não um defeito. No entanto, no livro que referi, há uma parte em que o Lobo está sentado nas escadas do prédio onde vive, à porta da casa (ou do quarto, não me lembro bem) de uma viúva. Está com um ar satisfeito, e o narrador, que o encontra, não percebe bem a razão de se estar ali sem fazer nada, de modo que é isso que pergunta ao Lobo. Este responde que está ali a apreciar a beleza da limpeza pequeno-burguesa. A viúva que vivia naquela casa cuidava da mesma até mais não poder, limpava tudo todos os dias, enchia o pequeno lance de escadas de higiene e terebentina (e talvez até de umas quantas plantas, mas já não me lembro se este pormenor estava no livro ou se sou eu a inventar, porque encher os lances de escadas de plantas também é farfalhudo) e o Lobo (e eu, acrescento) gostava disso, dessa pertença a alguma coisa, do conforto da higiene burguesa, dessa limpeza pequenina que vem com o desejo de uma vidinha certinha, de uma casinha, de uma tranquilidadezinha que ele não tinha, e que também não era bem o que ele queria, mas se calhar até era (ou, talvez, o que ele queria era conseguir querer a tal limpeza pequeno-burguesa, se é que isto faz sentido).
A limpeza pequeno-burguesa foi uma ideia que me ficou, indelével, depois de ler o Lobo das Estepes. É apenas um pormenor, no livro e nas nossas vidas, mas tão verdadeiro e tão reconhecível que nunca o esqueci, talvez porque já observei esta higiene burguesa, pequenina e confortavelzinha, tantas vezes, em tantas casas.
Não quero com isto dizer que a minha casa seja suja. Pelo contrário, eu até limpo a minha casa com toda a razoabilidade. Não sei é se o cheiro da terebentina farfalhuda lá está. Espero que não, mas, se estiver, também não é assim tão mau.
Etiquetas: Rita Faria